terça-feira, 23 de abril de 2024

Salman Rushdie mostra que inveja dos fanáticos é mais forte que suas crenças


Não é preciso morrer para escrever uma obra-prima. Mas Salman Rushdie, dessa vez, exagerou: no dia 12 de agosto de 2022, enquanto discursava no palco de um anfiteatro, foi brutalmente esfaqueado por um criminoso de 24 anos.

Sobreviveu, ninguém sabe como. E publicou agora o relato dessa quase-morte –"Faca: Reflexões sobre um Atentado"–, com uma lucidez e ironia que só não são invejáveis porque o horror que as permitiu não é coisa que se inveje.

A ironia está no lugar do crime e no motivo que levou Rushdie até lá: Chautauqua, pequena cidade no norte do estado de Nova York, para falar sobre a importância de proteger os escritores dos seus eventuais inimigos.

Mal comparando, é como imaginar Chapeuzinho Vermelho falando sobre os perigos da floresta para uma alcateia de lobos.

Foi então que um lobo se levantou da audiência, correu para Rushdie e, durante 27 segundos (o tempo que demora a recitar um soneto de Shakespeare, esclarece ele), foi desferindo golpes sobre golpes –no rosto, no peito, no olho direito–, exatamente como Rushdie sempre imaginou que aconteceria.

Essa familiaridade tem dois sentidos aqui. Durante 33 anos, o escritor viveu sob a condenação à morte sentenciada pelo aiatolá iraniano Ruhollah Khomeini depois da publicação do livro "Os Versos Satânicos". Meia dúzia de complôs foram tentados, e frustrados, contra o escritor durante esse tempo.

Mas, dois dias antes do ataque, Rushdie também sonhou com o encontro fatal: no pesadelo, viu-se no meio de um anfiteatro romano, à mercê da fúria de um gladiador.

Quando acordou, o homem que não acredita em premonições pensou seriamente em cancelar a sua viagem a Chautauqua.

Não admira que, no momento do ataque, uma frase e uma pergunta tenham cruzado a sua mente. "Aqui está você", pensou, com a resignação de um condenado. "Mas por que agora?", perguntou, com terrível incredulidade. O passado não tinha já passado?

Pelo visto, não. O criminoso lera apenas duas páginas do célebre livro. A radicalização acontecera no YouTube, assistindo a vídeos sobre Rushdie e suas alegadas heresias. Foi o que bastou.

Apesar da mediocridade intelectual do personagem, Rushdie tenta falar com ele. Não na realidade –Rushdie não é Beckett, que fez questão de se encontrar com seu agressor parisiense depois de também ter sido esfaqueado.

O encontro é uma simulação literária e um dos grandes momentos do livro. Discutem ambos a crença e a descrença, Deus e os seus intérpretes, a sociedade laica e as suas tentações.

No fim, Rushdie é levado a concluir, ou talvez a confirmar, a futilidade de qualquer conversa. Tudo é ressentimento no coração de um terrorista. Ele, Rushdie, não passara de um pretexto. "Qual foi o rosto que você viu quando me tentou matar?"

Notável pergunta. Terá sido o rosto do pai? Da mãe? Dos irmãos?

Do amor não correspondido?

Dos amigos que se perderam, ou que nunca apareceram?

Ou terá sido o rosto do próprio terrorista?

Sim, Salman Rushdie é um pretexto, mas Deus também é. "Os homens tendem a ter as crenças que se adequam às suas paixões", escreve Rushdie, citando Bertrand Russell. "Os homens cruéis acreditam num Deus cruel e usam essa crença para desculpar a sua crueldade. Só os homens bondosos acreditam num Deus bondoso e seriam bondosos em qualquer caso."

O criminoso é irrelevante, conclui o autor. O criminoso é ninguém. Perdoá-lo ou não, odiá-lo ou não, entender seus motivos ou não –tudo isso é conferir ao inominado (nunca lemos o nome do criminoso no livro) uma dignidade, ou uma atenção, que ele não merece.

O que resta, então?

Para Rushdie, continuar. A verdadeira vitória é poder continuar amando, escrevendo, vivendo, mesmo que a felicidade possível exiba as cicatrizes de um passado que não se esquece.

Continuar, em suma, é responder à violência com a arte –e talvez seja isso que perturbe tanto os fanáticos: a incapacidade para saírem do mundo estreito e violento em que vivem, transfigurando seus medos e fracassos em algo de belo e duradouro.

Agora que penso nisso, é uma hipótese normalmente ignorada nas discussões sobre a liberdade de expressão. A inveja dos fanáticos é mais forte que suas crenças ou sentimentos.


Texto de João Pereira Coutinho na Folha de São Paulo

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Diante de Gaza


É ridículo o esforço diário para se manter informado sobre eleições na Rússiainteligência artificial, as declarações do Alexandre de Moraes, o livro novo da Annie Ernaux, a provável volta de Donald Trump e o filme "Oppenheimer". Tudo isso gera um sentimento de engajamento, de estar participando... Mas exatamente do quê?

Sobre as onipresentes redes, é ridículo se solidarizar com os moradores de rua compartilhando o vídeo que viralizou no Instagram com agressões cometidas por PMs, mas mudar de calçada quando vê uma família acampada no caminho ou um "noia" todo mijado em frente ao restaurante da moda ao lado do Copan, no centro de São Paulo. O engajamento por meio de hashtags e abaixo-assinados online só serve para limpar a própria consciência. Não muda nada.

É ridículo comprar alimentos orgânicos na feira do MST na Vila Madalena e chamar um Uber no aplicativo do iPhone porque é muita coisa para carregar. Na verdade, o ridículo dessa situação é acreditar que ao comprar meia dúzia de batatas e não sei mais o quê se está, de fato, fazendo algo pela justiça social no campo.

Também é ridículo ler o James Baldwin ou o Frantz Fanon e achar que está do mesmo lado dos jovens pretos da periferia que vêm sendo chacinados desde sempre pela PM paulista. É claro que vale a pena entender o papel de cada um na construção de uma sociedade obscenamente racista —o problema é extrapolar isso tudo e esconder o próprio privilégio, que jamais desaparece. Não, não dá para sentir na pele a precariedade da moradia na capital ao almoçar num domingo de sol na Ocupação 9 de Julho.

É ridículo discutir se a festinha de São João na escolinha construtivista do filho celebra ou não o colonizador enquanto os indígenas no Xingu são assassinados pelas mesmas forças econômicas que garantem o sorriso sincero do nosso ministro Haddad anunciando o crescimento do país e sua volta ao grupo das dez maiores economias do mundo.

É ridículo insistir que a esquerda não morreu e que é preciso apoiar o governo Lula, haja o que houver, porque é a única forma de garantir que a direita não volte ao poder. Ela vai voltar. Este é um país que se entregou de vez ao fascismo. A direita é violenta, ignorante e covarde, mas organizada e disposta a ir às últimas consequências. Talvez a sensação de que tudo virou absurdamente ridículo venha do confronto com essa força brutal, que sempre esteve aí, mas um pouco camuflada. A gente é que se fazia de desentendido e seguia com a conversa meio ingênua, meio cínica sobre a construção de um país justo e desenvolvido para todos.

É bonito continuar se emocionando com as canções do Pixinguinha e do Chico Buarque, com uma boa feijoada com caipirinha, com "A Hora da Estrela", da Clarice, com um drible desconcertante do Garrincha e com os filmes do Glauber. Só é preciso aceitar que isso tudo não muda absolutamente nada.

É duro, mas é necessário assumir que o Brasil de hoje é feito de cultos bregas em igrejas cafonas, música sertaneja no último volume, machões imbrocháveis, estandes de tiro e muito, mas muito agro. O país do futuro chegou, gostemos ou não.

Tenho 47 anos e sinto que a minha vida se tornou uma enorme piada de mau gosto. Desconfio que nem sempre foi assim. Mas pouco importa: diante de Gaza, tudo é ridículo.


Texto de Tiago Ferro na Folha de São Paulo.

domingo, 31 de março de 2024

A ditadura militar e da 'burguesia nacional' criou uma sociedade desastrosa


ditadura de 1964-1985 foi de mortos, desaparecidostorturaestupro, exílio, censura, propaganda parafascista, imposição militar de brucutus-presidentes, eleições fictícias, fraudadas ou muito limitadas. A grande massa de analfabetos não votava nem ao menos no elenco de candidatos autorizado pelos brucutus, a casta militar ignorante, bruta e ignara até hoje.

Menos se recorda que foi um período de repressão de sindicatos, de movimentos sociais, em particular os populares; de repressão salarial, de seguros sociais limitados e que excluíam os mais pobres.

Quase pouco se nota, na conversa mais comum, que a ditadura produziu uma sociedade desastrosa, mais do que um desastre social. Por um tempo disfarçada por taxas de crescimento econômico altíssimas, a ruína perdurou.

O que é uma sociedade desastrosa? Um exemplo muito claro são as grandes cidades, embora cidades médias mimetizem o arranjo perverso das metrópoles.

São monstros praticamente inadministráveis. É impossível reformá-las sem grande custo econômico e sem transformação social forte, em um esforço de décadas. São a essência da desigualdade de renda, de patrimônio (propriedade imobiliária), de acesso a serviços públicos, do racismo. O pobre é discriminado até no uso da rua, o que se evidencia no transporte público ruim e nas ruas tomadas por carros.

A grande cidade brasileira é resultado de uma urbanização desastrosa. Por um lado, até meados do século 20, havia uma grande população largada no campo, sem terra, sem escola, sem saúde ou mesmo sem voto. Não tivemos reforma agrária quando isso poderia provocar transformação socioeconômica profunda: multiplicação do número de proprietários, criação de meios de subsistência que poderiam dar pão ao povo enquanto se educavam crianças e jovens, com algum atendimento de saúde, e melhora na distribuição espacial da população.

Por outro lado, a industrialização foi limitada. A partir dos anos 1970, não absorvia o êxodo dos desesperados da miséria rural (e menos ainda depois dos anos 1980 e 1990, com o enxugamento tecnológico do emprego industrial).

A ditadura sobreveio como um modo extremo ou final de impedir esses mínimos progressos: reforma agrária, aceleração da oferta de escola, de direito a voto etc. Extremo, pois a oposição à reforma social é sempiterna no Brasil.

O debate político das reformas possíveis foi interditado nos 20 anos de domínio dos brucutus e de seus beneficiários civis, aquela "burguesia nacional" com a qual a esquerda tanto se preocupa.

A população rural excedente, como se dizia, lotou uma periferia sem casa decente, sem saneamento, sem luz, sem escola. A saúde pública não era universal (não havia SUS). Esse povo vivia de emprego mal pago em serviços ou de subemprego, se tanto. A partir dos anos 1970, mais e mais ficou sujeito à violência e à organização do crime. A partir dos anos 1970, parte desse povo cria as igrejas neopentecostais.

É fácil perceber que o Brasil de agora se formou também na grande aglomeração dos deserdados da sorte rural, na urbanização selvagem.

A ditadura fez muito mais pelo atraso. Criou um sistema em que a "burguesia nacional" vivia de rendas, de proteções contra a concorrência externa (por vezes, também doméstica), de estatais ineficientes, de bloqueios de importação de tecnologia. Criou um sistema de baixa produtividade e ajudou a enraizar o protecionismo. Alimentou a inflação, que se tornou hiper nos primeiros anos da democracia, sob políticas populistas e doidivanas. A estabilização econômica foi um processo que levou quase 15 anos, de 1985 a 1999.

O desastre social brasileiro se entrincheirou entre 1964 e 1985. Parte do povo continua morta e desaparecida sob essa ruína duradoura.


Texto de Vinicius Torres Freire na Folha de São Paulo

sexta-feira, 29 de março de 2024

Sionismo e Israel são projetos coloniais, diz autor considerado herdeiro intelectual de Edward Said


O palestino Yusuf al-Khalidi escreveu em 1899 uma carta para Theodor Herzl, considerado o pai do sionismo moderno. Yusuf se opunha à criação de um Estado judeu na Palestina. Dizia: é habitada por outras pessoas.

Seu sobrinho-trineto faz hoje um alerta semelhante. Em seu livro "Palestina", Rashid Khalidi afirma que o sionismo e Israel são projetos coloniais que culminaram na alienação da população nativa palestina.

Khalidi, 75, é um dos principais intelectuais palestinos desta geração. É de certo modo um herdeiro de Edward Said, autor do estudo clássico "Orientalismo", publicado pela primeira vez em 1978. Assim como ele, leciona na Universidade Columbia, em Nova York.

O livro "Palestina" saiu em 2020 nos Estados Unidos, mas só chega agora ao Brasil, pela editora Todavia. Uma de suas teses centrais é a de que os palestinos são alvos de uma guerra há mais de cem anos. Isto é, desde antes de suas terras darem lugar a Israel, em 1948 —ou da campanha militar lançada na Faixa de Gaza pelo Exército de Tel Aviv em 7 de outubro passado.

A ofensiva, motivada por um ataque do grupo terrorista Hamas ao sul israelense que deixou cerca de 1.200 mortos, já tirou a vida de mais de 32 mil palestinos segundo as contas de autoridades de saúde de Gaza, ligadas à facção. Entidades internacionais ainda acusam Tel Aviv de usar a fome como uma tática de batalha.

"O sionismo é e sempre foi colonial e usou estratégias coloniais, incluindo a compra e a confiscação de terras e a eliminação da população original", diz Khalidi à Folha. Ele também é enfático na sua crítica ao apoio americano a Israel. "Sem os EUA, nada disso estaria acontecendo."

O senhor publicou seu livro em 2020 falando em uma guerra de cem anos contra a Palestina. Há agora uma nova guerra acontecendo.
A tese central do livro se mantém. Temos que enxergar o que está acontecendo em Gaza dentro do contexto de uma guerra mais ampla, que é uma guerra para substituir uma população por outra, apagar a identidade de uma população nativa e tomar o máximo possível de terra.

O livro sugere que o sionismo foi desde o início um projeto colonial.
O sionismo sempre disse que é um projeto nacional, o que não é inteiramente falso. É um projeto nacional de judeus do Leste Europeu. Foi uma resposta à perseguição de judeus de lá, que levou à conclusão de que apenas uma entidade nacional poderia proteger os judeus. Nada disso é falso. Mas o sionismo é e sempre foi colonial e usou estratégias coloniais, incluindo a compra e a confiscação de terras e a eliminação da população original. São os métodos clássicos. Foi o que aconteceu na América portuguesa e espanhola, nas colônias britânicas e francesas. Não há diferença nos métodos. Isso sem contar o fato de que os líderes sionistas diziam isso de um modo explícito. Não tinham dúvida de que eram europeus tomando um país de sua população nativa.

É controverso dizer que o sionismo é um projeto colonial. Por quê?
Devido a uma das campanhas de propaganda mais brilhantes da história que convenceu o mundo, em especial depois do Holocausto, de que a Europa tinha a obrigação de ajudar a criar esse refúgio para os judeus. Há também o argumento bíblico. Protestantes, como nos EUA, creem que há um mandamento divino para os judeus retornarem à terra.

É também controverso dizer que o sionismo é um projeto nacional?
É difícil para muitos aceitar que, com o tempo, uma identidade nacional se desenvolveu entre a população de colonos. É difícil para os palestinos dizerem: os israelenses são um povo e têm direitos, em especial porque esses direitos são exercidos em detrimento dos direitos dos palestinos.

Como essa situação —um projeto colonial e nacional— se resolve?
Há três possibilidades. A primeira é a eliminação da população nativa ou sua redução a um ponto em que podem ser desconsiderados politicamente, como na América do Norte, na Austrália e na Nova Zelândia.
A outra possibilidade é a expulsão dos colonos, que aconteceu na Líbia e na Argélia. A terceira é que os colonos sejam aceitos como nativos ou vivam lado a lado com os nativos. É o que vemos na África do Sul —os colonos perderam sua hegemonia, mas permaneceram. Só que estamos longe disso. Ficamos ainda mais longe com o 7 de Outubro.

O seu livro começa em 1917. Por que o senhor escolheu essa data?
É a data da Declaração Balfour [em que o governo britânico apoiou a criação de um lar judaico na Palestina]. Foi quando tudo isso tomou forma. É a data da intrusão dos britânicos. Sem apoio internacional, Israel não teria sido criado. Até então, sionistas buscavam um patrono. Esse apoio mudou com o tempo. Desde os anos 1960, tem sido os EUA.

Qual papel os EUA têm no que acontece hoje em Gaza?
Os EUA são indispensáveis para o genocídio, para o uso da fome como arma, para a morte de milhares de crianças. Sem eles, nada disso estaria acontecendo. Esse apoio vai mudar agora? Não sei. Mas há uma mudança em curso na opinião pública. Israel nunca terá o apoio global que teve. Isso por conta das redes sociais e da mídia alternativa, em especial entre os mais jovens. O que não significa que a política vai mudar, porque aqueles que tomam decisões não mudaram.

Essa mudança tinha começado antes da guerra, o senhor não acha?
Sim. Tem a ver com a ascensão das redes sociais e o total desprezo pela imprensa tradicional. Há também uma nova geração de ativistas entre os palestinos e árabes. Há, ainda, uma sensação entre muitas pessoas de que a luta palestina é semelhante à deles. Afro-americanos e nativos americanos se dão conta de que é parecido com o que seus avôs viveram: histórias de deslocamento, imigração forçada, discriminação. Reconhecemos uma opressão quando nos deparamos com ela, dizem.

Que papel o Brasil pode ter nesse contexto? Declarações como a do presidente Lula, que falou em genocídio, podem ter algum impacto?
É claro que sim. É necessário um esforço imenso [para alterar a situação]. Quanto mais países mudarem sua posição, haverá mais pressão em Israel e nos EUA. Pode não parecer muito, mas cada país que chama um genocídio de "genocídio" coloca mais pressão.


RAIO-X | RASHID KHALIDI, 75

Nascido em Nova York numa família palestina, cursou seu doutorado na Universidade Oxford. Historiador, leciona na Universidade Columbia. É autor de importantes estudos sobre Palestina.


Reportagem e entrevista a cargo de Diogo Bercito na Folha de São Paulo.

sexta-feira, 15 de março de 2024

Quem censura livro anda de quatro


"Toda censura é burra" é uma máxima de origem incerta que pertence ao patrimônio de sabedoria coletiva da espécie. É incontestável. Toda censura é de uma estupidez zurradora e babona, e essa notícia não podia ser mais velha.

Segundo o pesquisador Eric Berkowitz, autor de "Dangerous Ideas" (Ideias perigosas), uma história da censura, a primeira queima registrada de escritos ocorreu em 430 a.C. com a obra do filósofo grego Protágoras, que punha em dúvida a existência dos deuses.

Por que, então, a censura ainda é capaz de ser notícia no século 21, como se comprova na atual perseguição aos romances "O Avesso da Pele" (Companhia das Letras), de Jeferson Tenório, e "Outono de Carne Estranha" (Record), de Airton Souza?

A resposta é óbvia: porque a burrice é uma constante na história humana em geral e na brasileira em particular. Não só os comedores de alfafa não saem de moda como, em certos momentos e lugares, experimentam picos de poder e popularidade.

Para quem andou distraído: o livro de Tenório, uma delicada história sobre racismo, e o de Souza, que trata com sensibilidade da relação homossexual entre dois garimpeiros de Serra Pelada, têm sofrido sanções diversas.

Ambos são êxitos literários reconhecidos pela parte do Brasil que não anda de quatro. "O Avesso...", realização de um autor jovem mas maduro, levou um Jabuti e virou best-seller. "Outono...", obra de estreia, conquistou o (até então) prestigioso prêmio Sesc de romance.

Nada disso impediu o livro de Tenório de, depois de "denunciado" por uma diretora de escola do interior gaúcho, ser recolhido da rede pública de ensino por determinação de três secretarias estaduais de Educação –no Paraná, em Goiás e no Mato Grosso do Sul.

A alegação ­–grotesca– é que os alunos do ensino médio se chocariam com alguns palavrões esparsos. Do ensino médio, pois é. Fica evidente o oportunismo político, jogo de cena para eleitores de extrema direita.

O caso do livro de Souza é mais curioso, pois envolve um tiro de escopeta desferido no próprio pé por quem deveria promovê-lo. Chocada com a leitura pública feita pelo autor na última Flip, a direção do Sesc decidiu jogar no lixo a reputação conquistada por um prêmio que era, disparado, o mais importante do país para obras inéditas.

Cancelou a agenda de divulgação dos vencedores do ano passado –o que inclui o belo volume de contos "O Ninho", de Bethânia Pires Amaro, que nada tinha a ver com a história– e demitiu o curador do prêmio, o escritor Henrique Rodrigues, fiador de seu sucesso ao longo de duas décadas.

Ao fazer isso, põe em risco a parceria com a editora Record, que manifestou "extremo incômodo" com o ocorrido. E levanta a suspeita de que terá filtros político-ideológicos para os premiados de agora em diante –o que, como jurado de contos em 2023, posso atestar que não havia. Em resumo, o prêmio Sesc teve um surto de pânico homossexual, pulou no abismo e, se já não morreu, está em coma.

É burrice ou não é? Burrice máxima, e em série. Enquanto isso, os livros que os censores tentam proibir vendem cada vez mais, despertam cada vez mais interesse –toda censura acaba por boicotar a si mesma.

E ainda fomenta a burrice de quem, diante desse involuntário estímulo comercial, acha que ela pode ser relativizada como benéfica, sem entender que o mal feito à liberdade é um mal absoluto, um crime absoluto, a ser repudiado de forma absoluta.


Texto de Sergio Rodrigues na Folha de São Paulo

sábado, 9 de março de 2024

O nome disso não é genocídio, ok?


É preciso ter cuidado com as palavras, usá-las com a maior precisão possível. Outro dia, no bairro carioca da Gávea, presenciei uma cena comovente. Um menino magro e maltrapilho de cinco ou seis anos interpelou uma senhora bem-vestida que saía do supermercado cheia de sacolas e disse: "Me paga um lanche, tia? Dois dias que eu não como".

Não ganhou dinheiro para comer, mas algo até mais valioso, uma lição que o acompanhará pelo resto da vida –medida de tempo talvez curta, paciência. "Me paga, não! Não se começa frase com pronome oblíquo átono", respondeu a mulher, antes de seguir seu caminho reto e tônico.

Outro exemplo de uso desleixado da linguagem que a mulher poderia apontar: chamar de genocídio o que ocorre em Gaza. Parece que isso contraria, além de muitas sensibilidades e a orientação da Casa Branca, também a definição jurídica da palavra. Mas há alternativas.

Pode-se rotular o massacre metódico de civis palestinos promovido por Israel de "banho de sangue", por exemplo. É difícil fazer ressalvas a uma expressão tão precisa para nomear o extermínio de mulheres, bebês, crianças, adolescentes e velhos em suas casas, hospitais e campos de refugiados, acompanhado do veto a toda tentativa de ajuda humanitária.

Uma vantagem de "banho de sangue" é que, não havendo sinal de sangue quando se asfixiam seres humanos em câmaras de gás, eventuais paralelos com o Holocausto ficam descartados de saída, impedindo o falante de incorrer no crime retórico que fez o presidente brasileiro ser declarado "persona non grata" pelo moralmente inatacável governo israelense.

É verdade que a expressão "banho de sangue" pode ecoar, na mente de quem a ouve ou lê, outros massacres de populações indefesas, como os que vitimaram os armênios na Primeira Guerra Mundial e os tútsis de Ruanda nos anos 1990. Em ambas as ocasiões correu sangue à beça, como em Gaza. O problema é que desse modo a indesejada —e teimosa— palavra "genocídio" voltaria à boca de cena. Pensando bem, melhor buscar outra solução.

Quem sabe a velha carnificina dê conta do recado? Ou chacina, hecatombe, açougue? Faxina étnica é melhor evitar, por mais que substantivo e adjetivo pareçam encaixáveis entre si e com a realidade, mas o vocabulário da desumanidade e da matança voluptuosa está longe de ser limitado.

Razia, carnagem, morticínio ­­– são muitas as opções lexicais à disposição do falante que tem achado difícil tocar sua vida normal enquanto vê na tela do celular, quase em tempo real, vidas inocentes serem trucidadas aos magotes, dia após dia, diante de uma humanidade apática ou impotente.

Algum desconforto é natural: nunca tínhamos passado exatamente por isso depois que nos interconectamos. E é claro que pessoas decentes não querem ser acusadas de antissemitismo – palavra que, esta sim, tem sido usada com imprecisão obscena em cobranças de rendição moral incondicional, como se criticar o governo de Israel equivalesse a defender o indefensável terrorismo do Hamas.

É só que não acham correto, essas pessoas apegadas a velhos valores humanistas, que o povo palestino seja tratado como uma colônia de cupins por um governo supremacista de extrema-direita enquanto assistimos a tudo calados, reféns de Biden, Netanyahu e outros filhos de uma égua, ou medindo vocábulos feito tartamudos diante da madame da Gávea que nos aponta seu dedo de esmalte vencido e nos ensina o modo aceitável de usar as palavras.


Reprodução de texto de Sergio Rodrigues na Folha de São Paulo.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Lula está certo sobre Gaza e não é antissemita


Desde que Lula evocou o Holocausto para denunciar a destruição de Gaza por Israel, a grande mídia brasileira se uniu, com raras exceções, para condená-lo. Na segunda-feira (19) à noite, o jornalista William Waack afirmou na CNN Brasil que a declaração de Lula "ofende judeus no mundo inteiro".

Deixando de lado a incongruência que é ver William Waack se colocar como vigilante da intolerância e fiscal do que se pode dizer no discurso público, a pergunta que faço é: com base no que ele se coloca como porta-voz dos "judeus no mundo inteiro"?

É verdade que a declaração de Lula enfureceu o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que declarou Lula "persona non grata" em Israel. Mas equiparar o governo de Israel a "judeus no mundo inteiro" não é só falso, é também antissemitismo.

Como todos os grupos, os judeus não são um monolito. Qualquer pessoa que, como eu, tenha crescido numa família judaica e imersa nessas tradições sabe que o grupo passa longe de ser homogêneo. Há dentre os judeus discussões e divergências sobre os mais diversos assuntos, inclusive o Estado de Israel, o tratamento desumano dispensado aos palestinos e a abjeta imoralidade da destruição de Gaza.

Um mês antes do ataque do Hamas de 7 de outubro, o ex-chefe do Mossad, agência de inteligência israelense, Tamir Pardo —indicado por Netanyahu— afirmou que Israel impõe "uma forma de apartheid aos palestinos". Muitos líderes Israelenses, incluindo o ex-primeiro Ministro Ehud Barak, já disseram o mesmo.

O jornalista judeu brasileiro Breno Altman vem repetidamente comparando as ações de Israel em Gaza ao nazismo, ao ponto de estar sendo investigado pela Polícia Federal por expressar sua visão. Um grupo de judeus brasileiros, conforme relatado pela Folha, emitiu uma nota para defender as declarações de Lula.

Nesta semana, a escritora judia russa Masha Gessen recebeu o Polk Award, o segundo prêmio mais importante no jornalismo dos EUA, por seu brilhante ensaio na revista New Yorker intitulado "Na Sombra do Holocausto". No texto, Gessen aponta como o Holocausto é frequentemente evocado para silenciar as críticas aos crimes de guerra de Israel.

Gessen cita a filósofa Hannah Arendt, judia que em 1948 comparou grupos sionistas extremistas ao Partido Nazista, tanto em sua mentalidade quando em suas táticas —isso tudo menos de três anos depois do fim da Segunda Guerra.

No mesmo ano, o físico judeu Albert Einstein e outros importantes intelectuais judeus publicaram uma carta comparando os métodos de atuação de Menachem Begin, o terrorista sionista que se tornaria depois primeiro-ministro de Israel, aos dos nazistas.

Em seu artigo, Gessen documenta como os intelectuais judeus mais importantes do pós-guerra insistiam que as lições do Holocausto deveriam ser aplicadas universalmente, e que nenhum país ou grupo, sionistas inclusive, deveria se furtar de absorver esse aprendizado.

Gessen então descreve como, visitando os museus do Holocausto pelo mundo, se lembrava do sofrimento da população de Gaza nas mãos de Israel.

Sabendo então dessa enorme pluralidade no seio da comunidade judaica, como explicar a pretensão de uma pessoa como William Waack, que, como a grande maioria da mídia brasileira, se sente no direito falar em nome dos judeus e de impor limites às discussões sobre o Holocausto? E os judeus que rejeitam os ditames dos Netanyahu do mundo, quem falará por nós?

Equiparar as ações do governo de Israel à totalidade dos judeus do mundo é ofensivo. Todas as pesquisas mostram que o público israelense se voltou fortemente contra Netanyahu e espera ansiosamente para depô-lo. Há protestos contra ele, liderados por judeus israelenses, todos as semanas. São judeus muitos dos líderes mais vocais em suas denúncias de que a guerra em Gaza é um genocídio.

Mas há ainda um tema muito mais importante trazido à tona pela controvérsia: a quem pertence a memória do nazismo e da Segunda Guerra? Existe alguém com legitimidade para ditar como o Holocausto pode ser discutido, por quem, e com que agenda política? Existem países específicos cujas ações estão imunes, por algum motivo, às comparações com os piores abusos da Segunda Guerra? Se sim, essa imunidade se baseia em quê?

Quando a Segunda Guerra terminou e a real dimensão do Holocausto foi revelada, os países aliados, uma vez vencedores, decidiram não executar imediatamente os líderes nazistas. Em vez disso, foi realizado um processo jurídico transparente, conhecido como o julgamento de Nuremberg.

O objetivo era publicizar e legitimar o veredito —e, mais que isso, mostrar ao mundo as evidências das atrocidades cometidas pelos nazistas para, acima de tudo, estabelecer os princípios pelos quais os países deveriam se guiar no futuro.

O procurador-chefe dos EUA no julgamento, Robert Jackson, enfatizou em suas colocações iniciais que a maldade nazista se repetiria no futuro. "Esses prisioneiros nazistas representam uma influência sinistra que continuará no mundo mesmo depois que seus corpos retornarem ao pó."

Referindo-se às sentenças contra criminosos nazistas específicos, Jackson disse: "Se esse julgamento for ter alguma utilidade no futuro, deverá servir para condenar também a agressão de outras nações, inclusive as que aqui estão na posição de julgadoras".

Os horrores do Holocausto não foram uma lição sobre a maldade dos alemães ou a vulnerabilidade dos judeus. Foram uma lição sobre a natureza humana e a nossa capacidade para o mal, e como sociedades sofisticadas e educadas podem sucumbir a impulsos genocidas. Por isso, as sentenças proferidas em Nuremberg não podem dar a qualquer país, incluindo Israel, uma justificativa para suas próprias ações. Pelo contrário: os crimes do Holocausto não podem ser repetidos por nenhum país, nunca mais.

Os horrores da destruição de Gaza por Israel já estão visíveis para todos que quiserem ver. O ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, prometeu no início da guerra: "Estamos impondo um cerco total a Gaza. Nem eletricidade, nem comida, nem água, nem combustível. Tudo bloqueado". O motivo: "Estamos lutando contra animais e agimos em conformidade".

Hoje podemos ver que essa promessa, bem como a ideia de que os palestinos são sub-humanos, não era blefe. Segundo relatório da ONU, de todas as pessoas do mundo que enfrentam a fome extrema, 80% estão em Gaza. Trata-de se uma crise humanitária sem paralelo, diz o texto. Há inúmeros casos, incontroversos e amplamente documentados, de crianças à beira da morte por fome.

Ao menos 29 mil pessoas foram mortas em Gaza desde que Israel começou a retaliação aos ataques do Hamas de 7 de outubro: 70% são mulheres e crianças. A destruição da vida civil em Gaza é pior do que qualquer guerra que o mundo tenha visto no século 21.

Mais bombas foram lançadas por Israel em Gaza, um território pequeno e densamente povoado, na primeira semana do conflito armado (cerca de 6.000) do que foram jogadas anualmente pelos EUA no Afeganistão, de 2013 a 2018 (nesse período, nenhum ano registrou mais de 4.400 bombas), segundo dados da Força Aérea israelense e da Central das Forças Aéreas dos EUA.

Ninguém, nem mesmo Lula, está sugerindo que a escala das mortes em Gaza seja comparável ao Holocausto. O que muitas pessoas estão dizendo —inclusive alguns dos intelectuais judeus mais proeminentes do mundo, como Masha Gessen— é que os mesmos princípios de desprezo pela vida e desumanização coletiva que culminaram no Holocausto estão também por trás da destruição de Gaza.


Texto de Glenn Greenwald na Folha de São Paulo

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Hipócritas gentis infantilizam minorias porque elas são um bom negócio


Guerras culturais são sempre um bom negócio. Amadores discordam. São questões de vida ou morte, dizem eles, defendendo ou atacando pronomes neutros.

Os profissionais riem. Um deles, meu colega, explicou-me anos atrás que deixara temas clássicos —Espinosa e Leibniz— para se dedicar a temas de "interseccionalidade". No ranking das publicações, subiu ao pódio. Caso contrário, ainda estaria comendo pó.

É o mercado, estúpido! E o que é válido para a academia é válido para qualquer ramo de atividade. Se você pensa que a multinacional "X" ou "Y" tem convicções profundas quando abraça os temas "woke", você precisa fazer um exame neurológico. Sério.

É por isso que "American Fiction", o filme indicado ao Oscar, vem na altura certa. Suspeito que várias cabeças vão explodir quando assistirem à obra. Muitas explodiram quando leram o livro.

Mas, antes, uma confissão: sempre que alguém filma um romance de que gosto muito, eu tremo um bocadinho. Raramente me engano. Basta pensar no vandalismo a que foram submetidos todos os livros de Philip Roth pelo cinema.

Felizmente, isso não acontece com "American Fiction". O livro que inspirou o filme —"Erasure", de Percival Everett— está no top dez dos melhores romances americanos do século 21. O filme, pelo menos, não estraga. Para mim, basta.

No centro da história —atenção, spoilers— está Thelonious Ellison, que todos tratam por Monk, em homenagem ao grande pianista de jazz. Thelonious é um professor universitário e escritor. Também é negro, mas isso é secundário, pensa ele.

Pensa mal. Nas livrarias, os seus livros estão sempre na seção de estudos afro-americanos. Furioso, ele faz questão de os remover dessas estantes para os devolver, sem rótulos, à de ficção americana. Chega de segregação.

Além disso, o seu agente não consegue vender para nenhuma editora o mais recente romance de Ellison. Demasiado erudito. Escrito em inglês perfeito. Quem ele julga que é?

Um escritor branco?

As editoras, devidamente chefiadas por brancos, não admitem que um negro escreva livros sem os clichês do gueto. Querem linguagem chula, querem crack, querem rappers. Querem pobreza, querem polícia, querem mortes. Como diz o agente porto-riquenho, "querem se sentir absolvidos".

Ellison despreza esse fascínio mórbido dos brancos. É uma nova forma de exploração que persiste em reduzir os negros a uma caricatura tão insultuosa como as caricaturas dos tempos das leis de Jim Crow.

"Eu nem acredito em raça", diz ele. "O problema é que todos acreditam", responde o agente.

Thelonious medita nessas últimas palavras. E, só por piada, escreve o tipo de livro que faz sucesso entre os "racistas do bem". Sob pseudônimo, claro, porque o homem tem uma reputação a preservar.

Bingo! Uma grande editora faz uma proposta milionária para comprar os direitos. A piada virou coisa séria. O que fazer?

O agente, numa das melhores sequências do filme, põe três garrafas de uísque Johnnie Walker sobre a mesa. E explica: existe Johnnie Walker Red, Johnnie Walker Black e Johnnie Walker Blue.

Ele, Thelonious, será sempre um Johnnie Walker Blue, o melhor, o mais caro.

Mas as massas, para matarem a sede, compram Johnnie Walker Red, mais barato. Que mal tem ser um Johnnie Walker Red de vez em quando?

O livro é publicado com o belíssimo título de "Fuck". Bestseller imediato. Hollywood vem a seguir.

"American Fiction", tal como o romance de Percival Everett, é uma sátira primorosa ao paternalismo dos brancos. Conheço casos: hipócritas gentis que infantilizam as minorias porque são um bom negócio.

Que as supostas minorias tenham vidas normais, com alegrias normais, angústias normais ou amores normais, eis um pormenor demasiado burguês para quem prefere ver o mundo transformado em jardim zoológico. Cada um na sua jaula. Que pensarão as minorias disso?

Não posso falar por elas. Mas posso falar por Thelonious "Monk" Ellison, que supera a sua justa indignação e decide lucrar com a estupidez dos brancos. O cliente tem sempre razão, no fim das contas.

E, mesmo quando não tem, é ele quem paga as contas.


Texto de João Pereira Coutinho na Folha de São Paulo

EUA são hipócritas ao atacar Rússia por violação de direitos humanos

 

Os seres humanos são tribais. O tribalismo moldou nossa evolução e, por isso, poucas coisas nos trazem mais prazer do que nos unirmos em torno de traços comuns —a nação, os partidos, a ideologia. Um de nossos prazeres é apontar os erros de tribos inimigas.

Esse tribalismo ficou em evidência nos Estados Unidos na última sexta-feira (16). A morte do opositor russo Alexei Navalni em uma prisão na Sibéria foi condenada por líderes norte-americanos de ambos os partidos: dos liberais Joe Biden, Hillary Clinton e Bernie Sanders à presidenciável republicana Nikki Haley e muitos senadores de direita.

A mensagem era clara: os EUA podem não ser perfeitos, mas pelo menos não perseguem e matam seus dissidentes como faz a Rússia. Essa é uma ilusão sedutora, que permite aos EUA se sentirem superiores.

A reação não foi de todo despropositada. Quando uma pessoa saudável é presa, fica doente na prisão e morre, é razoável imputar a culpa ao governo responsável pela prisão. Faria bem, aliás, que as autoridades brasileiras adotassem essa régua.

É, porém, difícil crer que as elites norte-americanas creiam nesses princípios elevados. Os EUA não só têm aprovado o assassinato de seus cidadãos por seus aliados estrangeiros como vêm fazendo de tudo para calar seus críticos mais ferozes.

Em maio de 2023, Gonzalo Lira, um cidadão chileno-americano, foi preso pela segunda vez por autoridades ucranianas. Lira morava na Ucrânia desde 2016, tendo-se casado com uma mulher ucraniana. O crime de Lira? Suas críticas ao presidente ucraniano Volodimir Zelenski e sua insistência em dizer que a Ucrânia e seu maior apoiador, os EUA, mentem sobre a guerra.

Ele foi preso acusado do crime de "disseminar desinformação pró-Rússia". Semanas antes de sua prisão, Lira publicou um vídeo implorando pela ajuda de seu governo, alertando que seria mandado para a prisão e que poderia ser morto pelos ucranianos.

No início do mês passado, o consulado dos EUA em Kiev informou que Lira, até então saudável, havia morrido em 11 de janeiro, de pneumonia, na prisão.

O pai de Lira, um economista chileno, me disse em entrevista na semana passada que os funcionários consulares se recusaram a ajudar seu filho e a dar qualquer informação sobre sua morte, tendo tampouco cobrado o estado ucraniano pela liberdade e vida de seu filho.

As semelhanças entre os casos de Navalni e Lira são gritantes. Ambos eram críticos dos governos que os prenderam e os deixaram morrer na prisão. No entanto, nenhum dos políticos americanos que agora condenam ruidosamente a Rússia mencionaram a morte de seu concidadão por seu aliado Zelenski.

Há também os inúmeros casos de cidadãos dos EUA mortos por Israel: um país financiado e armado, mas raramente criticado, pelos EUA. No ano passado, o Exército israelense matou a jornalista americana Shireen Abu Akleh, que vestia um colete de imprensa em Gaza.

As Forças de Defesa de Israel negaram qualquer relação com a morte, até que uma investigação atestou sua culpa. No mês passado, o Exército israelense matou um adolescente americano na Cisjordânia, Tawfic Abdel Jabbar. Nenhum representante americano condenou Israel pela morte de seus compatriotas.

Não se pode esquecer dos ataques dos EUA contra seus próprios Navalnis. Julian Assange está há quase quatro anos apodrecendo numa prisão inglesa, batalhando pela vida porque o governo dos EUA —primeiro sob Trump, e agora Biden— insiste na sua extradição e prisão pelo "crime" de expor crimes de guerra cometidos por Washington.

E, é claro, Edward Snowden, que continua sem poder sair da Rússia, procurado pelo crime de expor espionagem ilegal e inconstitucional por parte do governo do EUA.

Ainda que os norte-americanos prefiram continuar cegos, o resto do mundo pode ver que o governo dos EUA não segue os princípios que impõe ao resto do mundo.

Sempre que algum líder mundial é cobrado por jornalistas dos EUA ou do Reino Unido por ataques à liberdade de imprensa que teriam cometido, a réplica sempre lembra dos casos de Assange e Snowden para dizer que os EUA não têm credibilidade para criticar os outros países.

No Ocidente, a propaganda nos ensina que é uma cortina de fumaça quando os líderes estrangeiros apontam as hipocrisias dos EUA a respeito de direitos humanos. Argumentam que os EUA devem sim cobrar os outros países, mesmo que internamente pratiquem os mesmos abusos e violações de direitos.

No entanto, o que se convencionou chamar de cortina de fumaça é o verdadeiro teste. É sempre fácil criticar um governo estrangeiro do outro lado do mundo. Difícil é criticar o seu próprio lado.


Texto de Glenn Greenwald na Folha de São Paulo