segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Resposta a Samuel Pessôa

Em sua coluna no último domingo (23), o economista Samuel Pessôa, ex-assessor de Aécio Neves e de Tasso Jereissati, me acusou de "enorme desonestidade intelectual". Minha trapaça teria sido incluir no texto "Por quem as panelas batem" (16.ago), entre dezenas de razões para se indignar com a realidade brasileira, ao lado de dez descalabros petistas, três famigerados escândalos tucanos: a compra de votos para a emenda da reeleição, o mensalão mineiro e o cartel do metrô paulistano.
Na visão "poliana" do colunista, vivemos num país justo, onde os bandidos estão na cadeia, os inocentes regando o jardim, o Ministério Público e a PF são instituições que "gozam de independência", e, se não há nenhuma condenação nos "supostos escândalos tucanos", citá-los ao lado de falcatruas do PT é um "truque retórico inaceitável". "Será que Antonio Prata acredita que somente candidatos tucanos conseguem ser aprovados nos concursos públicos para o Ministério Público ou a Polícia Federal?".
Não –o Brasil é esculhambado demais para uma seleção tão criteriosa–, mas olhando o passado recente, temos de admitir que, amiúde, a Justiça é mais "independente" pra uns lados do que pra outros. Não se trata de opinião pessoal, fruto da minha "desonestidade intelectual. "Justiça tarda e falha", editorial desta Folha no dia 30 de março de 2015, começa assim: "Prescrição, atrasos, incúria e engavetamento beneficiam políticos do PSDB acusados de irregularidades, inclusive no dito mensalão tucano."
Réu no mensalão tucano, Eduardo Azeredo renunciou ao cargo de deputado federal em 2014 para que o processo saísse do STF e voltasse à primeira instância, onde se encontra até hoje, "no regaço da Justiça mineira" –aspas daFolha.
No escândalo da emenda da reeleição, apesar de negociatas de votos estarem gravadas (veja depoimento de Fernando Rodrigues, Prêmio Esso de 1997 com matéria sobre o assunto: migre.me/rkS8y), o "Engavetador Geral da República", Geraldo Brindeiro, primo de Marco Maciel, vice de FHC, preferiu deixar pra lá. Quanto ao cartel do metrô, basta lembrar que um pedido de investigação do Ministério Público suíço empacou por três anos na mesa do procurador Rodrigo de Grandis, que por pouco não perdeu a chance de contar com a parceria fundamental dos europeus.
O que Samuel Pessôa, tão irado com a inclusão dos três "supostos escândalos" no freak show da política nacional, diz sobre eles? Nada. Prefere apregoar a inocência de Antonio Anastasia, num caso a que jamais me referi. Menciona FHC, mas para apontar a absolvição do ex-secretário Geral da Presidência, Eduardo Jorge, num processo sobre a "aquisição de um apartamento na orla marítima da cidade do Rio de Janeiro." Só não devolvo a acusação de "truque retórico" porque tanto os truques quanto a retórica precisam, para merecer tais nomes, persuadir.
Em minha coluna, não citei os escândalos tucanos para negar ou ofuscar os crimes petistas que, felizmente, foram e estão sendo investigados. Meu ponto é que creditar todas as mazelas nacionais a um único partido, como fazem militantes tipo Samuel Pessôa, só ajuda a escamotear as verdadeiras raízes do nosso atraso, além de denotar profunda ignorância sobre a realidade brasileira ou, aí sim, "enorme desonestidade intelectual".


Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Por que decidi processar Gilmar Mendes

O Ministro Gilmar Mendes me processou, um daqueles processos montados apenas para roubar tempo e recursos do denunciado. Eu poderia ter ficado na resposta bem elaborada do meu competente advogado Percival Maricatto.
Mas resolvi ir além.
Recorri ao que em Direito se chama de "reconvenção", o direito de processar quem me processa.
A razão foram ofensas graves feitas por ele na sessão do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) na qual não conseguiu levar adiante a tentativa canhestra de golpe paraguaio, através da rejeição das contas de campanha de Dilma Rousseff.
Todo o percurso anterior foi na direção da rejeição, inclusive os pareceres absurdos dos técnicos do TSE tratando como falta grave até a inclusão de trituradores de papel na categoria de bens não duráveis.
Não conseguiu atingir seu propósito graças ao recuo do Ministro Luiz Fux, que não aceitou avalizar sua manobra. Ele despejou sua ira impotente sobre mim, valendo-se de um espaço público nobre: a tribuna do TSE.
 Certamente quem lucrou foram os blogs sujos, que ficaram prestando um tamanho desserviço. Há um caso que foi demitido da Folha de S. Paulo, em um caso conhecido porque era esperto demais, que criou uma coluna 'dinheiro vivo', certamente movida a dinheiro (...) Profissional da chantagem, da locupletação financiado por dinheiro público, meu, seu e nosso! Precisa ser contado isso para que se envergonhe. Um blog criado para atacar adversários e inimigos políticos! Mereceria do Ministério Público uma ação de improbidade, não solidariedade”.
O que mereceria uma ação de improbidade é o fato de um Ministro do STF ser dono de um Instituto que é patrocinado por empresas com interesses amplos no STF em ações que estão sujeitas a serem julgadas por ele. Dentre elas, a Ambev, Light, Febraban, Bunge, Cetip, empresas e entidades com interesses no STF.
Não foi o primeiro ato condenável na carreira de Gilmar. Seu facciosismo, a maneira como participou de alguns dos mais deploráveis factoides jornalísticos, a sem-cerimônia com que senta em processos, deveriam ser motivo de vergonha para todos os que apostam na construção de um Brasil moderno. Gilmar é uma ofensa à noção de país civilizado, tanto quanto Eduardo Cunha na presidência da Câmara Federal.
A intenção do processo foi responder às suas ofensas. Mais que isso: colocar à prova a crença de que não existem mais intocáveis no país. É um cidadão acreditando na independência de um poder, apostando ser possível a um juiz de primeira instância em plena capital federal não se curvar à influência de um Ministro do STF vingativo e sem limites.
Na resposta, Gilmar nega ter se referido a mim. Recua de forma pusilânime.
“o Reconvindo sequer faz referência ao nome do Reconvinte, sendo certo que as declarações foram direcionadas contra informações difamatórias usualmente disseminadas por setores da mídia, dentro dos quais o Reconvinte espontaneamente se inclui”.
Como se houvesse outro blog de um jornalista que trabalhou na Folha, tem uma empresa de nome Agência Dinheiro Vivo e denunciou o golpe paraguaio que pretendeu aplicar na democracia brasileira.
A avaliação do dano não depende apenas da dimensão da vítima, mas também do agressor. E quando o agressor é um Ministro do Supremo Tribunal Federal, que pratica a agressão em uma tribuna pública - o Tribunal Superior Eleitoral - em uma cerimônia transmitida para todo o país por emissoras de televisão, na verdade, ele deveria ser alvo de um processo maior, do servidor que utiliza a esfera pública para benefício pessoal.

Reprodução do Blog do Luís Nassif

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Grandes jornais escondem Aécio de seus leitores

Julio Cortazar, em um de seus contos clássicos, conta a história da família em que morreu um membro. A avó não podia saber. Esconde-se sua morte. É verdade que ele é velado na sala da casa, enquanto alguém entretém a velhinha em outro cômodo. Mas dali por diante, ele teria que ser incluído nas conversas, como se estivesse vivo. Depois, morre mais um, e morre mais um. E todos recusam continuar vivos nas conversas.
Outro contista do fantástico latino-americano, não me lembro se Gabriel Garcia Marques, conta a história da moeda de ouro que caiu na porta de um bar. Como ninguém sabe quem perdeu a moeda, e pode ser o coronel local, a moeda permanece no mesmo lugar por anos a fio.
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Em alguns momentos, o Brasil lembra o realismo fantástico das republiquetas latino-americanos.
Tem-se um cadáver na sala de estar da política: a declaração do doleiro Alberto Yousseff de que o senador Aécio Neves recebia US$ 150 mil mensais de Furnas, esquentados através da empresa Bauruense.
O Procurador Geral da República Rodrigo Janot fingiu que não ouviu. E esqueceu-se de que sua gaveta guarda um inquérito de 2010 do MPF do Rio de Janeiro, sobre uma conta fantasma de Aécio no paraiso fiscal de Liechenstein.
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A notícia foi para o mundo inteiro através da Reuters Internacional. Notícia tão relevante que abriu a chamada das Top News do dia. Foi manchete do Clarin – o mais antikirchenista dos grupos de mídia argentinos.
Por aqui, nenhum grande jornal julgou que seus leitores mereciam saber do caso. Nâo saiu uma mísera linha sobre a delação.
Ontem, na sabatina de Janot no Senado, o assunto foi evitado em todas as intervenções, dos senadores da oposição e da situação. O sentimento de corpoi foi maior do que as disputas ideológicas. Ou, quem sabe, o medo de expor seus próprios podres tenha sido a razão de preservar os podres do colega.
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Não é pouca coisa. Trata-se do candidato derrotado nas últimas eleições que recebeu quase 50% dos votos. É o nome favorito do PSDB para as próximas eleições.
Nos últimos meses, despontou como um carbonário, bradando em nome da ética e vociferando a palavra “honra” com o fervor de um monge beneditino exposto a alguma tentação demoníaca.
Hoje em dia, em qualquer setor responsável – no meio empresarial, intelectual, político nas próprias alas mais consequentes do PSDB – forma-se a convicção sobre a imaturidade e irresponsabilidade de Aécio.
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Onde se pretende chegar com essa blindagem, sonegando uma informação crucial em um terreno de ampla abertura das informações? Mais do que o fato em si, a blindagem viralizou – termo que se emprega quando algum tema explode nas redes sociais.
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Nesta 5a feira será divulgada a próxima etapa da campanha visando reforçar a imagem dos jornais. Diretor-executivo da ANJ (Associação Nacional dos Jornais), Ricardo Pedreira, foi taxativo: “Enquanto a internet ainda sedia terrenos de informação obscura, os jornais colocam à disposição do leitor seu grande patrimônio: a credibilidade”.
Qual a sensação do leitor do grande jornal quando encontrar-se com o amigo que prefere a Internet, e souber por ele a notícia que só circulou na rede?
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Não se trata de questão menor. Quando Fernando Collor caiu, venceu no jogo da credibilidade o único jornal que nada escondeu sobre ele nas eleições.


Reprodução do Blog do Luís Nassif

A PM paulista trabalha para ocultar provas dos massacres


Repousa nas gavetas da Procuradoria Geral da República, em Brasília, a proposta de federalização dos crimes cometidos pela Polícia Militar em São Paulo.
Seria oportuno desengavetá-la, se o país, de fato, quiser se livrar de condenações aplicadas pelas cortes internacionais de direitos humanos.
A proposta surgiu para apurar os crimes de maio de 2006 - mais de 600 pessoas massacradas por grupos de extermínio, em ação articulada, ao que tudo indica, pela Secretaria de Segurança de São Paulo.
De lá para cá, a Polícia Militar de São Paulo transformou-se em uma máquina de assassinar jovens de periferia.
modus operandi é conhecido de qualquer policial. Primeiro, aparecem os motoqueiros encapuçados assassinando as pessoas. Em seguida, uma viatura da PM para limpar as provas. Finalmente, o laudo inconclusivo do Instituto Médico Legal (IML).
Nos massacres de 2006, cessaram as mortes apenas quando bravos médicos do Conselho Regional de Medicina correram ao IML para fiscalizar os atestados.
Agora, nas investigações dos últimos massacres, repete-se a operação acobertamento.
A atitude do alto comando da PM de ordenar à corregedoria para invadir as investigações da Polícia Civil é claramente uma manobra para esconder vestígios que eventualmente identifiquem os verdadeiros mandantes das chacinas.
Ao acobertar as chacinas de 2006, São Paulo - entendido governo, Poder Judiciário, imprensa, entidades civis - colocou um monstro na rua. Enjaulá-lo de novo exige uma força e vontade políticas que não se vê na gestão Geraldo Alckmin.

Reprodução do Blog do Luis Nassif

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

A prova do pudim da Lava Jato nas mãos de Janot

Todos os jornais impressos esconderam a declaração do doleiro Alberto Yousseff à CPI da Petrobras, de que o senador Aécio Neves recebia US$ 150 mil mensais de Furnas.
Após o impeachment de Fernando Collor, um jornal se vangloriou de não ter escondido seu passado: a Folha de S.Paulo. Essa atitude ajudou a pavimentar sua reputação pelos anos 90 a fora.
Agora, todos os jornais brasileiros se calaram, inclusive a Folha. Mesmo depois dos serviços online - que não haviam sido enquadrados - terem dado a notícia que, àquela altura, já tinha transbordado para o mundo.
A notícia abriu a Top News da Reuters internacional. Seria manchete em qualquer jornal respeitável do mundo. Afinal, um candidato a presidente da República, no passado, recebia dinheiro de corrupção, proveniente de uma estatal. Não se tratava de algum recurso recolhido por um tesoureiro de partido, mas dinheiro direto na conta.
A delação de Yousseff veio com todas as peças encaixadas: o valor da propina, a destinatária (a irmã de Aécio) e até a empresa que fazia a lavagem do dinheiro (a Bauruense). Os bravos procuradores da Lava Jato teriam levantado essas operações em um dia de trabalho. Bastaria quebrar o sigilo da Bauruense.
Além disso, na gaveta do PGR repousa um inquérito desde 2010 apontando para lavagem de dinheiro de familiares de Aécio Neves em um banco de Liechenestein. Tinha-se o começo e provavelmente o destino final da propina.
Mesmo assim, o Procurador Geral da República Rodrigo Janot não endossou a denúncia sustentando estranhamente que dizia respeito a um outro episódio e o delator (o deputado que contou sobre a propina a Yousseff) já ter morrido. Equivale a um jovem procurador que invade um escritório à procura de pistas sobre roubos de eletrônicos, encontra provas de roubos de remédios e deixa de lado porque no momento ele só trabalha com roubos de eletrônicos.
Janot poderia ter pedido autorização para o STF (Supremo Tribunal Federal) para ao menos investigar a denúncia, garantindo o sigilo nas investigações. Nem isso foi solicitado.
Qual a lição que se pretende passar?
A Lava Jato pretende demonstrar que não é apenas mais uma investigação de corrupção, mas a operação que irá mudar o pais. Houve outras investigações na história.
No início dos anos 50 os IPMs (Inquéritos Policiais Militares) prenderam pessoas próximas a Vargas e colocaram em xeque o próprio poder presidencial, a ponto de criar o clima que levou ao suicídio do presidente. Ficou conhecida na história como uma manobra golpista, não como uma ação virtuosa.
Em 1963 e 1964, meros delegados de polícia colocavam na cadeia até empresários poderosos ligados a Jango, sob os argumentos mais estapafúrdios: Santo Vahlis, um venezuelano que tentou comprar um jornal no Rio, foi jogado em uma cela sob a acusação de ter escondido seu local de nascimento.
O anônimo delegado de polícia comprovou que proximidade com o governo não blindava ninguém, com o poder, sim . E sua valentia se devia apenas ao fato de que o poder já mudara de mãos. Ele era apenas um joguete nas mãos do verdadeiro poder.
A Lava Jato será conhecida na história não pelos poderosos que prendeu, mas pelos poderosos que poupou. Será ou a operação que limpou o Brasil, ou a operação instrumentalizada por um grupo político para desalojar outro grupo político.
A prova do pudim estará nos intocáveis, os cidadãos do lado de cá, tão acima de qualquer suspeita que não serão sequer investigados mesmo sendo delatados por delatores que mereceram toda a confiança dos procuradores nas delações contra o lado de lá.
As suspeitas sobre Aécio, agora, correm o mundo, nas asas da Reuters e de outras agências internacionais. Está nas mãos de Janot garantir a reputação internacional da operação que irá marcar para sempre a história do país: se apenas uma operação autorizada pelo poder do lado de cá, ou se uma operação que colocará definitivamente o Ministério Público Federal como avalista de uma nova República.

Reprodução do Blog do Luís Nassif

A lição da libertação de uma carioca acusada da morte de uma turista italiana

A farmacêutica Mirian França, negra, sem antecedentes criminais, presa arbitrariamente por longos 16 dias no início de 2015, sob acusação de ter assassinado Gaia Molinari, turista branca italiana, na praia de Jericoacoara, em Fortaleza, entrou com representação administrativa contra a delegada Patrícia Bezerra, responsável pelo caso. A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro acolheu o pedido.
O caso ficou conhecido porque Mirian, além de sabedora de seus direitos, teve a seu favor  organizações e pessoas que se movimentaram para defendê-la: associações de mulheres negras, feministas, de Direitos Humanos. O coordenador do curso de pós-graduação em Bioquímica, no qual estava matriculada na capital fluminense, deslocou-se até Fortaleza para depor a seu favor. Amigos e familiares não descansaram um minuto sequer, mobilizando todas as redes e recursos imagináveis (inclusive internacionais) para libertá-la.
Essa mobilização se opôs ao que Milton Santos caracterizou como a brutalidade com que a informação inventa mitos. Dizia o geógrafo em entrevista a Gilberto Gil em 1996: “Acho que vai haver uma grande mudança política, mas nós não temos noção dessa possibilidade, dessa enorme mudança, por causa da violência da informação que é um traço característico do nosso tempo. A brutalidade com a informação inventa mitos, impõe mitos e suprime o que a gente chamava antigamente de verdade, essa violência da informação e das finanças, criou uma certa ideia tão forte do mundo atual que a gente fica desanimado diante da possibilidade de um outro futuro”.
Mirian França foi transformada pela delegada e pela mídia cearense em principal acusada do assassinato de uma turista eurodescendente por meio de fortes pancadas, mesmo sendo fisicamente frágil e não apresentando marcas de luta corporal. A imprensa local rejeitou veementemente o argumento construído por sua defesa popular de que Mirian estaria sendo vítima do racismo que transforma qualquer pessoa negra em suspeita preferencial de crimes, mesmo sem provas.
Conseguida a liberação do cárcere, Mirian França continuou constrangida a permanecer os 30 dias seguintes em Fortaleza, dessa forma, não pôde voltar para casa no Rio de Janeiro e retomar a vida sequestrada pela prisão. Este foi o recurso encontrado pela Defensora Pública que cuidou do caso para, de alguma forma, contentar a delegada que impunha a Mirian a prisão injustificável baseada em contradições bizarras nos depoimentos, tais como, o número de cafezinhos que Gaia Molinari teria tomado enquanto esteve em companhia de Mirian França.
Pela milionésima vez havia-se que superar dois mitos reforçados pela brutalidade impositiva da informação, quer sejam, a inexistência do racismo no Brasil e a existência da justiça imparcial, válida para todos.
Meses depois de conquistar a liberdade, Mirian França conseguiu seu intento junto à Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, ou seja, sua representação administrativa contra a delegada Patrícia Bezerra, que presidiu o inquérito do assassinato de Gaia Molinari, foi acatada.
O pleito baseou-se na tortura psicológica a que foi submetida e na tentativa de induzir o Judiciário ao erro, pois não houve base factual ou legal para sua prisão, além de erros como uma fantasiosa tentativa de fuga do Ceará, sendo que ela tinha endereço fixo, não tinha antecedentes criminais e era aluna regular de um programa de doutoramento em universidade pública.
Enfim, Mirian França concretizou o primeiro passo para demonstrar que a linha de investigação adotada pela delegada Patrícia Bezerra foi baseada em preconceito racial e de gênero, sendo cabível ressarcimento pelo Estado.

Texto de Cidinha Silva, no Diário do Centro do Mundo

4 erros que aparecem a cada escândalo de corrupção


Jean Wyllys escreveu, no facebook, uma reflexão sobre a essência da corrupção. Você pode ler abaixo.
Existem quatro erros comuns que se repetem cada vez que um caso de corrupção vem à tona e se transforma no “escândalo”, sobre os quais precisamos refletir:
1) O problema da corrupção não são os casos individuais, porém, cada vez que um caso de corrupção estoura na mídia, é tratado como se fosse um caso isolado. Assistimos, então, à construção de um “vilão”, sobre o qual recai a culpa por algo que não é mais do que um sintoma de um problema sistêmico. Nenhum partido (nem o PSOL) está isento de ter, em suas fileiras, um corrupto. Se o problema fosse apenas existirem pessoas corruptas, não seria tão grave: a solução seria apenas identificar e expulsá-las. Mas sabemos que o problema não é esse.
A corrupção é um componente inevitável de um sistema de governo em que as campanhas são financiadas por bancos, empreiteiras, empresários do agronegócio, igrejas fundamentalistas milionárias e todo tipo de lobistas; a governabilidade se garante comprando votos no Congresso (e o “mensalão”, seja petista ou tucano, não é a única maneira de se fazer isso; existem formas indiretas, como a distribuição, entre partidos aliados, de ministérios e órgãos públicos em função não do mérito, mas do orçamento) e governantes e parlamentares se preocupam mais em agradar empresários e corporações do que em manter o espírito republicano.
2) O problema da corrupção não é só moral. O “udenismo” costuma dominar o debate sobre a corrupção, e tudo é reduzido a desvios éticos individuais. A corrupção é também um problema econômico (porque são bilhões de reais que “somem” do orçamento da União, dos estados e dos municípios) e, sobretudo, um problema POLÍTICO. Não é por acaso que o PT, que antigamente era visto como o partido da ética, passou a se envolver cada vez mais casos de corrupção desde que chegou aos governos.
A corrupção acompanhou a aliança com o poder financeiro e o agronegócio; veio junto com submissão ao fundamentalismo religioso e com os acordos cada vez mais escandalosos com pilantras disfarçados de pastores que dominam o Congresso; acompanhou o uso da repressão contra o povo nas ruas e a adoção do discurso da “segurança nacional” que, no passado, foi usado para reprimir aqueles que hoje estão no governo. Ou seja, o que houve não foi uma degradação moral, mas uma renúncia ideológica e programática.
E, por isso, a grana e os privilégios do poder substituíram, em muitos petistas (não em todos nem mesmo na maioria militante!), as convicções e a vontade de mudar o mundo como razão para se engajar na política. Então, se realmente quisermos acabar com a corrupção, o primeiro passo é voltar a dotar a política de sentido e conteúdo, para que mais gente entre nela desejando mudar o mundo e não ficar rico.
3) O problema da corrupção não é apenas a violação das normas, mas o fato de ela muitas vezes ser as próprias normas. Um bom exemplo disso é o financiamento de campanhas, que está sendo julgado pelo STF: se um candidato faz uma campanha milionária financiada por empreiteiras e empresários do transporte e, já eleito, tem que decidir entre aumentar ou não a passagem de ônibus ou tem de escolher entre os direitos dos moradores e os interesses de uma empresa cujo projeto imobiliário implica em removê-los, qual será mesmo a escolha dele? Se um senador teve sua campanha financiada pelo agronegócio, vai votar a favor de que tipo de Código Florestal?
Sendo assim, esse sistema eleitoral, que leva à formação de mega-coligações para garantir a governabilidade, não pode prescindir da corrupção. Ou vocês acham que o partido do sistema, que já foi aliado de petistas e tucanos, vai votar as leis porque lhe parecem boas se não tiver mais dois ministérios em troca? Tem inúmeras condições estruturais que favorecem ou até impõem a corrupção como combustível necessário para o funcionamento do sistema. Por isso, de nada adianta fazer, da corrupção, um problema apenas moral se não fizermos mudanças estruturais; se não mudarmos as regras do jogo.
4) A corrupção não é o único nem o mais importante problema da política. Vamos supor, por um instante, que fulano, candidato a presidente, governador ou prefeito, é uma pessoa comprovadamente honesta, no sentido mais restrito do termo: jamais usaria do cargo para se beneficiar ou beneficiar amigos e familiares; jamais enriqueceria com dinheiro público; jamais roubaria ou seria cúmplice ou partícipe de um roubo. Contudo, esse mesmo fulano defende uma política econômica que prejudica os trabalhadores; é fundamentalista, racista, homofóbico, tem ideias ultrapassadas sobre as relações humanas; é autoritário, personalista e etc. logo, a honestidade dever ser um dos requisitos para se escolher um político, mas não podemos nos esquecer de que o mais importante é a política que ele faz ou propõe: as ideias, o programa, a visão de mundo, os interesses em jogo.
Colocar a corrupção (vista, como já dissemos, como um problema moral, exclusivamente individual, identificado apenas com um determinado setor político e, ao mesmo tempo, despolitizado no sentido mais amplo) é também uma forma de esconder os verdadeiros debates de que o país precisa, como se todos os nossos problemas se reduzissem a três ou quatro escândalos convenientemente destacados nas manchetes.

Reprodução do Diário do Centro do Mundo.

Pentágono rotula jornalistas como inimigos

Pentágono rotula jornalistas como inimigos

Norma descreve profissionais de mídia como 'beligerantes desprestigiados', categoria pior que prisioneiro de guerra
Classificação consta de manual da Defesa americana e, por ser vaga, abre espaço para censura, dizem críticos
MARCELO NINIODE WASHINGTON

Um novo manual de conduta do governo americano para militares em conflitos armados colocou defensores da liberdade de imprensa em pé de guerra com o Pentágono.
O motivo da insatisfação é uma norma que permite aos comandantes tratar jornalistas como "beligerantes desprestigiados", uma categoria equivalente a combatentes inimigos ou espiões.
Nesses casos, explicados de forma vaga no manual, jornalistas poderiam perder as proteções que recebem os civis sob a Convenção de Genebra, o tratados que estabelece princípios humanitários na condução de conflitos.
A sessão dedicada à imprensa ocupa uma pequena parte do documento de 1.176 páginas, mas tem causado barulho. Após ser publicado pelo Departamento de Defesa sem alarde, em junho, o manual ganhou destaque ao ser alvo de editorial do "New York Times" intitulado "A perigosa visão do Pentágono sobre o jornalismo de guerra".
A organização Repórteres sem Fronteiras enviou uma carta ao secretário da Defesa dos EUA, Ash Carter, pedindo a revisão do documento.
"Os Estados tem o dever de proteger jornalistas que cobrem conflitos armados" diz a carta. "Este manual dá um passo na direção errada."
Embora reconheça que em geral jornalistas devam ser considerados civis, o manual do Pentágono diz que, conforme a situação, eles podem ser equiparados a combatentes inimigos sem direito à proteção para civis ou até mesmo combatentes legais.
Em alguns casos, fornecer informação "poderia significar uma participação direta nas hostilidades", diz o documento. "Relatar operações militares pode ser muito similar a coletar inteligência ou mesmo espionar."
BRECHA PARA ABUSOS
A justificativa para categorizar jornalistas dessa forma "não tem base em nenhum caso lei ou tratado específicos", criticou Frank Smyth, consultor para segurança de jornalistas do Comitê de Proteção a Jornalistas, organização baseada em Nova York.
A maior preocupação é que uma norma tão vaga destinada situações extremas é um convite à prática de abusos.
"O argumento do manual de que algumas atividades de reportagem podem ser interpretadas como parte de hostilidades é ridículo. Uma norma definida de forma tão vaga pode servir para abusos de militares para censurar ou até mesmo atingir jornalistas", afirma o "New York Times".
O documento do Pentágono também prevê situações em que jornalistas podem ser censurados para não revelar informações ao inimigo. O manual recomenda que os profissionais de mídia façam seu trabalho com permissão das "autoridades relevantes".
Diante das críticas, o Pentágono defendeu-se com um comunicado no qual afirma que as regras "não representam uma diretriz e o manual não é uma ordem oficial".
Em entrevista à Rádio Pública Nacional, o advogado do Departamento de Defesa Charles Allen disse que as críticas seriam levadas em consideração para possíveis "atualizações" no manual.
Para críticos do presidente Barack Obama, o manual é outro indício da política pouco amistosa de seu governo com a imprensa. Desde sua chegada à Casa Branca, em 2009, os EUA caíram do 20º para o 49º lugar no ranking mundial de liberdade de imprensa da RSF, em 2014.
Entre as ações do governo condenadas pela organização estão o "assédio judicial" a um repórter que recebeu informação secreta de um agente da CIA e a prisão arbitrária de 15 repórteres que cobriam protestos contra a morte do jovem negro Michael Brown em Ferguson, Missouri.


Reprodução da Folha de São Paulo

Querer um SUS melhor não é sonho, é deixar de ser trouxa

É provável que você que lê agora este texto não seja um usuário habitual do SUS. Eu também não sou. Assim como mais de 50 milhões de brasileiros, tenho um plano de saúde.
Mas já utilizei o SUS várias vezes. Em dois acidentes de trânsito em que fui vítima, os socorristas do Samu me levaram a hospitais públicos de referência. O primeiro, o Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, e o segundo, o Hospital Municipal São José, em Joinville (SP). Ainda bem. Sabia que nesses locais estavam os profissionais mais habilitados para atender traumas porque o fazem com muita frequência.
Nas duas ocasiões, fiquei um tempo em macas no corredor, aguardando atendimento. Em uma delas, sofri um corte profundo na cabeça e havia suspeita de traumatismo craniano (passou perto, houve uma fissura). Estava ensaguentada, a cabeça latejava, mas aguardei pacientemente a minha vez porque era evidente que havia ali gente em estado muito mais grave do que o meu. Acompanhei a tentativa de os médicos reanimarem um senhor de meia-idade. Um, dois, três, quatro, cinco choques com desfibrilador e nada. Ele morreu ali, do meu lado.
Na segunda vez, no hospital em Joinville, fiquei na maca encostada ao caminhoneiro que, após de dormir no volante, jogou meu carro contra o guard rail. Perda total do veículo e quase da minha vida. Fui socorrida desmaiada, mas, felizmente, depois do período protocolar de observação, saí sem sequelas.
Todas as vacinas que já tomei foram no sistema público de saúde. Meus pais têm plano de saúde, mas buscam parte das medicações de uso contínuo no Farmácia Popular. Tenho tios, primos e conhecidos usuários frequentes do SUS, que fizeram, inclusive, transplantes.
Por essas e outras razões sou fã do sistema. Mas não fecho os olhos para os inúmeros problemas que ele tem. Como já escreveu o médico generalista espanhol Juan Gérvas, "no Brasil existe apenas a lei e o desejo de oferecer um sistema público, único e universal."
Ele tem toda razão. Hoje, 56% do custo da saúde recai sobre as famílias brasileiras. O gasto público em saúde recuou para 44% do total. Na Inglaterra e Suécia, por exemplo, que têm sistemas de saúde públicos e universais, o percentual é quase o dobro –84% e 81%, respectivamente.
Não bastasse o subfinanciamento, tem muito dinheiro desperdiçado por má gestão, ineficiência e corrupção. A coisa está errada em todos os níveis. Do faz-de-conta da carga horária dos médicos nas unidades públicas de saúde às fraudes milionárias, como as que envolveram a máfia das órteses e próteses. O SUS necessita de mais dinheiro, não resta a menor dúvida, mas fechar o ralo do desperdício precisa, necessariamente, caminhar ao lado da discussão por mais verbas.
Ao mesmo tempo, estamos assistindo ao fortalecimento de setores privados de saúde. E a Agenda Brasil, apresentada no último dia 11 aos ministros da área econômica, deu provas evidentes disso, quando uma das propostas sugeria a possibilidade de cobrança diferenciada de procedimentos do SUS por faixa de renda. Isso só não foi pra frente porque houve uma grande reação dos setores organizados do SUS.
A grande questão, contudo, permanece: de onde sairá o dinheiro para colocar em prática o SUS que só existe no papel? Em recente evento da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), o ministro da Saúde, Artur Chioro, fez algumas provocações sobre isso. "Esse financiamento virá do imposto das grandes fortunas ou da taxação das heranças? Vamos mexer na chamada taxação do pecado (fumo, álcool, jogo de azar etc)? Vamos direcionar recursos Dpvat [Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de Via Terrestre), que hoje ficam nas mãos das seguradoras e não vão para o usuário?"
É hora de quem ainda acredita em valores coletivos de solidariedade e igualdade (princípios que norteiam o SUS) participar desse debate. Eu quero um SUS melhor, um SUS que me dê a segurança de um cuidado adequado, no tempo certo. Eu e você já pagamos impostos suficientes e temos que brigar por isso. Não acho que seja sonhar demais. É simplesmente deixar de ser trouxa. 


Texto de Cláudia Collucci, na Folha de São Paulo

A receita da PM do Rio para trazer segurança à praia: vetar os pretos

No início do ano, auge do verão, a colunista Hildegard Angel escreveu um texto onde sugeria a redução de linhas de ônibus ou cobrança de entrada nas praias da Zona Sul do Rio de Janeiro como forma de inibir os arrastões.
A proposta de Angel foi absurda, mas na prática há anos o Estado promove ações para restringir o acesso de moradores da periferia às praias da Zona Sul, como neste domingo, quando 15 jovens foram abordados em um ônibus e recolhidos pela Polícia Militar sem qualquer acusação contra eles.
Conforme uma conselheira tutelar informou ao jornal Extra, os abusos aos direitos básicos dos jovens e adolescentes são rotina nos finais de semana ensolarados. “No início, o critério era estar sem documento e dinheiro para a passagem. Agora, está sem critério nenhum. É pobre? Vem para cá. Só pegam quem está indo para as praias da Zona Sul. Tem menores que, mesmo com os documentos, são recolhidos. Isso é segregação. Só hoje (domingo) foram cerca de 70. Ontem (sábado), foram 90.”
Tentativas de restringir a presença de moradores da periferia nas praias badaladas do Rio são corriqueiras como o mate gelado e o biscoito Globo vendidos nas areias. As ideias defendidas no infeliz artigo de Hildegard Angel são estapafúrdias mas são inéditas.
Em 1992, uma onda de arrastões no Rio de Janeiro foi notícia no país inteiro e inspirou manchetes e editoriais alarmistas, com sugestões preconceituosas para manter as praias foram do alcance da população mais pobre. Um deles, do Jornal do Brasil, sugeria o policiamento e controle das linhas de ônibus que ligam a Zona Norte à Zona Sul, conforme observa o artigo “Arrastão Midiático e Racismo no Rio de Janeiro”, do pesquisador e professor da UFMG Dalmir Francisco.
No caso ocorrido no último domingo, nem existe a justificativa da chamada “onda de arrastões nas praias”. A Polícia Militar deu uma explicação esfarrapada para a ação dos policiais, informando por nota que elas “ocorreram visando a proteger menores em situação de risco ou em flagrante de ato infracional”.
Proteção é oferecer à garotada moradia digna, saneamento, escolas e um sistema público de transporte público confortável que permita o acesso ao lazer e à cultura onde eles bem entenderem. Abordar sem motivos e infringir o direito de ir e vir só protege os interesses de quem acredita que as praias devem ser feudos restritos a uma minoria endinheirada.
A fala de um dos adolescentes abordados sintetiza a falta de políticas públicas para oferecer dignidade a uma juventude que se espreme em ônibus lotados só para curtir uma praia. “Nós “é” humilhado na favela e na “pista””, disse o menino de 14 anos.
Há grande chance dele não ter a mínima ideia de quem seja Hildegard Angel e da sugestão dela para controlar o acesso dos pobres às praias da Zona Sul, mas uma coisa é certa: ele conhece na pele o significado da palavra segregação.

Reprodução de texto de Marcos Sacramento, no Diário do Centro do Mundo.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Os três patéticos

Aécio Neves, Gilmar Mendes e Eduardo Cunha atuam como protagonistas de uma causa falida. Mesmo assim, não perdem uma oportunidade de expor em público sua estreiteza de horizontes. São golpistas declarados. Não importa a lógica, a política, a dialética ou mesmo o senso comum. Suas biografias, já não propriamente admiráveis, dissolvem-se a jato a cada movimento realizado para derrubar um governo eleito.
Presidente do PSDB, o senador mineiro-carioca pouco se incomoda com o ridículo de suas atitudes. Aécio sempre defendeu um programa de arrocho contra os pobres. Gabou-se da coragem de adotar medidas impopulares para "consertar o Brasil".
Agora sobe em trios elétricos como porta-voz do povo. Critica medidas de ajuste, jura pensar no Brasil e usa qualquer artimanha com uma única finalidade: isolar a presidente. Convoca sabujos para atacar um jornalista que revelou o escândalo do aeroporto construído para atender a ele e à própria família. Maiores informações na página A3 desta Folha publicada ontem (23/08).
Seu ajudante de ordens, ou vice-versa, é o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes. Sintoma da fragilidade do equilíbrio de poderes vigente no Brasil, Mendes emite toda sorte de opiniões fora de autos. Muda de ideia conforme as conveniências. De tão tendencioso e parcial, seu comportamento público seria suficiente para impugná-lo como síndico de prédio. Na democracia à brasileira, pontifica como jurista na mais alta corte do país. Quem quiser que leve a sério.
Mendes endossou as contas da campanha da presidente eleita alguns meses atrás. Coisas do passado. Esqueçam o que ele votou. De repente, detectou problemas insanáveis na mesma contabilidade e ruge ameaçadoramente contra o que ele mesmo aprovou. No meio tempo, acusa o Planalto de comandar um sindicato de ladrões financiado por empreiteiras envolvidas na roubalheira da Petrobras.
Bem, mas as mesmas empresas financiaram a campanha dos outros partidos. O que fazer? Vale lembrar: Mendes até hoje trava o julgamento favorável à proibição do financiamento empresarial de campanhas políticas. Seu pedido de vistas escancara um escândalo jurídico, legal e moral que o STF finge não existir. Ora, isso não vem ao caso, socorreria o juiz paladino Sergio Moro.
E aí aparece Eduardo Cunha, o peemedebista dirigente da Câmara. Terceiro na linha de sucessão presidencial, Cunha encenava comandar um exército invencível. Primeiro humilhou o Planalto na eleição para o comando da Casa. Depois, passou a manobrar o regimento para aprovar o que interessa a aliados nem sempre expostos. Tentou ainda se credenciar como alternativa golpista. Curto circuito total. Pego numa mentira de pelo menos 5 milhões de dólares, a acreditar no procurador geral, Cunha atualmente circula como um zumbi rogando piedade de parlamentares muito mais interessados em salvar a própria pele.
Cambaleante, o trio parece ter recebido a pá de cal com os pronunciamentos dos verdadeiros comandantes da nossa democracia. O mais recente veio do chefe do maior banco privado do país, Roberto Setubal. Presidente do Itaú Unibanco, Setubal afirmou com todas as letras não haver motivos para tirar Dilma do cargo. Tipo ruim com ela, pior sem ela ""que o digam os lucros pornográficos auferidos pela turma financeira.
Sem a banca por trás, abandonada pelo pessoal do dinheiro grosso e encrencada em acusações lançadas contra os adversários, à troupe do impeachment não resta muito mais que baixar o pano.


Texto de Ricardo Melo, na Folha de São Paulo

O PT matou o petismo


O risco imediato do impeachment foi afastado, embora a inoperância do governo e a ação de alguns conspiradores – notadamente Aécio Neves e Gilmar Mendes – sempre ameacem recolocá-lo na ordem do dia. Não foram as raquíticas manifestações da última quinta-feira que barraram o impeachment, mas a constatação, por parte de setores da elite e setores da oposição, de que seu custo político, econômico e social seria alto demais e de que o país poderia mergulhar num cenário de conseqüências imprevisíveis. Assim, foram as notas das Federações de indústrias, o editorial de O Globo, as manifestações de presidentes dos grandes bancos nacionais pedindo estabilidade, que barraram, ao menos temporariamente, o agravamento da crise política. Lula e o governo negociaram pelo alto, procuraram Sarney e outros setores, para construir um arranjo de concessões e garantias. Mesmo assim, a situação está tão frágil e existem tantos fios desencapados que a lerdeza do governo ou uma fagulha política qualquer podem precipitar o incêndio.
A observação dos acontecimentos políticos recentes permite concluir que nem o PT e nem o governo tiveram força política suficiente para manterem suas posições de poder. Essas forças faltaram no Congresso, no sistema político como um todo, e também nas ruas. Somente no entardecer do desfecho da crise, quando a chancela das elites para a continuidade de Dilma já tinha sido lavrada, é que as forças contra o impeachment saíram as ruas e, mesmo assim, com críticas variadas à condução da política econômica do governo.
Esta situação demonstra o quanto o PT se enfraqueceu; o quanto não organizou os movimentos sociais de forma autônoma; o quanto não mudou a cultura política dos beneficiários dos programas sociais; o quanto não tensionou as suas alianças políticas; o quanto não apostou na realização de reformas estruturantes;   o quanto desmoralizou a própria militância de esquerda e o quanto matou as virtudes da militância antiga, que tinha orgulho em freqüentar as portas de fábrica, as periferias, as universidades, os movimentos sociais para distribuir panfletos, sustentando ideias e sonhos, enfrentando repressões e rejeições.
Tudo isto acabou. As virtudes do ativismo e a coragem dos enfrentamentos se transformaram em escombros morais, em desmoralização e vergonha por um partido que se corrompeu, em ressentimentos e impotência pelas transformações não realizadas pelos governos petistas e em nostalgias por sonhos generosos que se desfizeram nas brumas dos enganos.
Sim, foi legítimo sonhar. Foi legítimo sonhar porque o PT e o petismo de outrora representaram o ideal da justiça social e da igualdade, os valores da ética na política, a força da organização autônoma dos trabalhadores, a perspectiva da participação cívica e política da sociedade organizada. Ocorreram conquistas, não se pode negar. Os programas sociais são evidentes; a fome e a desigualdade foram reduzidas; o ensino foi ampliado; pobres e negros tiveram acesso à universidade; as condições de vida melhoraram de forma geral.
Mas tudo isto foi pouco porque as condições estruturais da desigualdade e da injustiça não foram removidas; tudo isto foi pouco porque essas conquistas ameaçam retroceder por conta da crise econômica; tudo isto foi pouco porque o andar de cima ganhou muito mais do que ganharam os pobres; tudo isto foi pouco porque os que foram incluídos não se reconhecem num conteúdo político e organizativo da inclusão; tudo isto foi pouco porque a corrupção do PT e do governo derreteram o conteúdo e o sentido simbólicos dos avanços e tudo isto foi pouco porque foi pouco de fato.
Para mostrar que foi pouco, não se fale aqui dos bilionários ganhos dos bancos, das suas isenções tributárias ou dos R$ 500 bilhões de sonegação de impostos por ano. Fale-se apenas de algumas extravagâncias dos governos petistas. O Bolsa Família custa cerca de R$ 25 bilhões anuais. Nos últimos três anos, o Banco Central acumula perdas de R$ 86 bilhões apenas para tentar conter a alta do dólar. Cálculos do próprio Ministério da Fazenda mostram que, nos próximos anos, os empréstimos do BNDES feitos desde 2009, a juros subsidiados, custarão R$ 184 bilhões aos cofres públicos. Desse custo total, R$ 97,5 bilhões recairão no período de 2015 a 2018. A lista e os valores das extravagâncias são enormes.
As muralhas de Jerusalém do PT ruíram
O processo de formação do PT acabou precocemente com a chegada do partido ao poder. O partido ainda não havia elaborada uma consistência programática estratégica, uma sólida base de valores e princípios e ainda não contava com uma militância bem formada politicamente quando venceu as eleições em 2002. Tanto os líderes, quanto os militantes tinham uma frágil formação republicana. A jeremiada política, o discurso da advertência e dos riscos que as diversas formas e práticas da corrupção poderiam trazer ao partido e ao Brasil, nunca foi algo forte na retórica dos líderes petistas.
A chegada ao poder sempre representa um momento de apogeu a qualquer forma de organização política. Neste momento a questão é: a forma perdura no poder pelo seu exemplo virtuoso, pela sua renovação política e moral e pela sua permanente retificação mediante a retórica da advertência (jeremiada), ou ela se corrompe e declina. Como já foi enfatizado muitas vezes, ao não possuir a ideologia republicana da virtude e da frugalidade, o PT se corrompeu. A ideologia dos palácios e dos gabinetes se sobrepôs à ideologia das ruas e das praças. A ideologia dos hotéis de luxo e dos restaurantes caros afogou a ideologia da militância combativa e do ativismo cívico. O PT dependente do Estado e do financiamento privado derrotou o PT-movimento da militância ativa. Os líderes do partido passaram a conviver com os endinheirados, não mais com os trabalhadores, com os humildes, com os intelectuais, com os estudantes. Estes só foram procurados nas campanhas eleitorais.
A semente da erva daninha foi sendo cultivada pelo dinheiro fácil, pelas benesses dos ambientes luxuosos, pelos grandes interesses dos negócios inescrupulosos. A ambição e a cobiça dominaram corações e mentes de muitos petistas. Sequer as prisões do mensalão foram suficientes para estabelecer um freio. Os dirigentes e militantes honestos se sentiram inibidos e foram incapazes de assumir o discurso da advertência. Neste ambiente de dissolução política e moral, nenhum Jeremias surgiu para que a voz do correto e do honesto se fizesse ouvir com força. O escândalo da Petrobrás e as novas prisões de petistas já indicavam um realidade de devastação na cidadela petista. E, finalmente, a segunda prisão de José Dirceu, o homem que, junto com Lula, havia construído a fortaleza partidária, representou a ruína das muralhas da Jerusalém petista e do seu templo.
Simbolicamente, a essa destruição da Jerusalém petista não se assemelha àquela promovida por Nabucodonosor em 586 a. C. Se assemelha mais àquela promovida pelo imperador romano Tito, em 70 depois de Cristo. O que sobreveio à destruição foi a diáspora dos hebreus. O claro-escuro com que hoje a crítica pinta o PT significa que sua forma antiga envelheceu e que está acabada. Não pode mais rejuvenescer. Não significa que o PT desaparecerá, mas que é outra coisa do que era outrora. A virtude política, o ativismo cívico e o partido-movimento terão que nascer em uma nova forma.

Reprodução de texto de Aldo Fornazieri, no Jornal GGN