segunda-feira, 27 de março de 2017

Delicadeza é a virtude necessária para a percepção do amor no mundo

Muitos duvidam da existência do amor. Muitos afirmam ser ele uma invenção da literatura. Outros, que se trata de uma projeção neurótica imaginária. Uma patologia da família das manias. Há quem suspeite de que seja uma doença da alma. Estão errados.
Quem conhece o amor sabe que ele habita entre nós. E sua presença nos faz sentir vivos. Por isso, o ressentimento é cego ao amor. Pode ser raro, randômico, frágil muitas vezes, mas nem por isso menos marcante quando percebido.
Este é o tema do filme sueco "Um Homem Chamado Ove", de Hannes Holm, que foi indicado para melhor filme estrangeiro no Oscar deste ano. O cinema escandinavo está sempre entre os melhores do mundo. Poucos lidam com temas do afeto de forma tão elegante, do desespero à beleza, mas sempre elegante.
A história é um clássico: a morte de uma esposa amada e a solidão decorrente. O filme narra a "cura" do homem chamado Ove, principalmente, pelas mãos de sua vizinha grávida iraniana, e suas filhas, além de todos os vizinhos em volta, lembrando, em muitas cenas, uma máxima rabínica: Deus está nos detalhes.
E o Messias entra pela fresta da porta. O amor também, como diz o livro bíblico "Cântico dos Cânticos". A falta de atenção para com os detalhes torna qualquer pessoa obcecada pela falta de sentido das coisas. A delicadeza é a virtude cognitiva necessária para a percepção do amor no mundo.
Só quem conhece o amor sabe o desespero que pode ser perder a quem se ama. O amor é incomum.
Claro, nada tem a ver necessariamente com o casamento. Pode, inclusive, morrer pelas mãos do casamento. Casa-se com quem se ama porque o amor pede o convívio. A presença viva de que ele existe.
Estar longe de quem se ama implica numa falta que beira a asfixia. Na verdade, o amor está entre as formas mais poderosas de significado na vida. E vai muito além do amor romântico propriamente dito.
A percepção repentina do amor pode dar a quem o vê a sensação de estar diante de um milagre, dado a sua leveza, humildade e generosidade.
A falta de amor na vida produz um certo ceticismo em relação ao mundo. Ou pior: o sentimento de inexistência. O mundo fica escuro, e você, vazio. A falta de amor beira a descrença. Perde-se a confiança nas coisas. Mesmo nas árvores e nos pássaros.
Um dos pecados maiores da inteligência é chegar à conclusão de que o amor é uma ficção. Mas não é a inteligência que aí fala, mas a tristeza de um coração em agonia.
Muitas vezes, pessoas supostamente inteligentes consideram o amor algo ingênuo e pueril. E quem ama, um equivocado.
Não há razões pra amar, uma vez que o mundo parece provar a cada minuto que ele é o terreno da raiva, do rancor e do ressentimento. A ciência do mundo parece mesmo ser um tratado sobre a desconfiança.
Søren Kierkegaard (1813-1855), em seu "As Obras do Amor", da editora Vozes, alerta aos inteligentes que não confundam o amor com alguma forma de ignorância da mentira e dos riscos.
A desconfiança se acha a mais completa das virtudes morais ou cognitivas. A armadilha de quem desconfia sempre é que ele mesmo se sente inexistente para o mundo porque este é sempre visto com desprezo. É da natureza do amor olhar para fora e não para dentro. O amor não é apaixonado por si mesmo.
Outra suposta arma contra o amor é o fato de a hipocrisia reinar no mundo. A hipótese de a hipocrisia ser a substância da moral pública parece inviabilizar o amor por conta de sua cegueira para com esta hipocrisia mesma.
É verdade: o amor não vê a hipocrisia. Kierkegaard diz que há um "abismo escancarado" entre eles. Este abismo é de natureza, isto é, a diferença de postura entre os dois torna o amor tão distante da hipocrisia, que sua pantomima, fruto do desprezo pelas coisas, é invisível aos olhos do amor que une as coisas.
O amor é concreto como o dia a dia. Engana-se quem o considera abstrato e fantasioso. Kierkegaard nos lembra em seu primeiro ensaio como o amor só se conhece pelos frutos. Isso implica que não há propriamente uma percepção do amor que não seja prática. O gosto do amor é a confiança nas coisas que ele dá a quem o experimenta.


Texto de Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 24 de março de 2017

Temos baixo desenvolvimento humano?

Há poucos dias, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento lançou seu Relatório de Desenvolvimento Humano, em que os países são avaliados com base em um indicador composto, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que procura mensurar até que ponto o desenvolvimento chega às pessoas.
Em outros termos, com base em dados de saúde, educação e renda, um índice de zero a um é atribuído a cada três anos e uma linha de evolução evidencia o progresso do mundo e de cada país no período.
O índice foi criado por Mahbub ul Haq, em parceria com Amartya Sen, economista indiano laureado com o Prêmio Nobel de Economia, e combina em sua composição a escolaridade média da população, a expectativa de vida e o PIB per capita.
O relatório de 2015 apresenta-nos numa posição desconfortável: estamos estagnados no IDH, num patamar inaceitavelmente baixo para o nosso grau de desenvolvimento econômico. Aparecemos pior ainda quando se soma, aos três componentes do índice, uma de nossas maiores fragilidades: a desigualdade. Somos um país muito mais desigual do que países com PIB menor que o nosso.
O que chama atenção é que, nos últimos anos, melhoramos em alguns indicadores sociais relevantes, como ampliação do acesso à educação e redução da mortalidade materna e da mortalidade infantil.
Interessantemente, esta última realização é associada ao aumento da escolaridade feminina, embora também se beneficie do aumento de domicílios com saneamento básico. A desigualdade também diminuiu, fruto de políticas públicas como o Bolsa Família e o aumento do salário mínimo.
No entanto, parte destes avanços já havia sido capturada pelo relatório anterior e alguns problemas são de lenta resolução. Além disso, a recessão não nos ajuda a manter uma trajetória positiva; observe-se que os dados divulgados pelo PNUD são de 2015, o que indica que há chances importantes de piora no próximo relatório se não fizermos nada a respeito.
Infelizmente, o dado que ainda nos prejudica muito é o de anos médios de escolaridade da população. Se considerarmos a população de 18 a 29 anos, temos apenas 8,3 anos de estudo. Isso significa que, em média, não concluímos o ensino fundamental. Há razões históricas para tanto, mas isso contribui para mais desigualdade e pobreza.
Guillermo Perry, num estudo do Banco Mundial, mostra que a transmissão intergeracional de pobreza só se interrompe se as mulheres concluírem o ensino médio. Eu adicionaria: a construção de um processo de desenvolvimento humano mais sólido se inicia com a conclusão de um ensino básico de qualidade, o que ainda estamos longe de fazer!


Texto de Claudia Costin, na Folha de São Paulo

Uma puladinha de cerca em 20 anos?

Carol, amiga antiga, me pediu que saísse da reunião e fosse rápido pra sua casa: "Não paro de pensar besteira". Como assim, Carol? É só o que eu fiz minha vida inteira e nunca tirei ninguém do trabalho por conta disso. "Vem logo, o Paulo me traiu e eu não tô bem."
Depois de 19 anos de casamento (já começa daí: quem casa com 20 anos?) ela havia descoberto uma traição do marido. Oi? UMA? Amiga, vamos fazer uma festa surpresa pro seu marido? Uma única e singela traição de amado Paulo depois de quase 20 anos de casamento? Que é isso? Ele quer aparecer no "Fantástico"? Quer convite pra cear com o papa? Quer ter o busto imponente e corajoso como ponto turístico no centro da cidade? Quer virar boneco de pano politicamente correto (algodão natural, tecido orgânico, olhos verdes feitos a partir do reaproveitamento de garrafas PET) para crianças lactentes? Não, Carol, deve ter mais. Não é possível. Poxa, o Paulo sempre me pareceu um cara normal, gente boa, da paz. Ele não faria isso com a gente. Vamos investigar, peloamor, deve ter mais.
Carol não estava pra piada. Inconformada, arrasada, um trapo humano, ela só conseguia pensar em facas, armas, sangue, coisas quebradas e picotadas. Só conseguia pensar em besteiras. "Como ele pôde fazer isso comigo depois de tanto tempo?"
Como ele pôde fazer isso COM ELE depois de tanto tempo. Uma puladinha de cerca em 20 anos? Por Deus. Falemos a verdade! Primeiro: esse homem te ama. Segundo: o que meia horinha do desejo do outro tem a ver com a gente? Paulo não arrumou uma amante fixa, não jurou filhos e eternidade em outra casa, não se apoiou em dupla personalidade pra sobreviver a um amor falido. Não chegou com o coração enlevado (e o ventre melado) e, por meses ou anos, se deitou ao lado de Carol. Paulo, em 20 anos de casamento, foi ali dar uma voltinha. Meia horinha porque era quarta e a vida é dura. Aff, minha gente, Paulo é humano. Quiçá, um herói.
Carol, lembra ano passado, quando fomos na festa de final de ano daquela produtora? Você ficou de papinho com um cara e... "Não dá pra comparar. Eu estava chateada com o Paulo. Já o Paulo me traiu porque não presta mesmo". Ah, tá resolvido então! Mulher trai porque tá #chateada, homem porque "está em seu DNA". Que bela desculpa (machista!) nós inventamos pra galinhar. "Não era tesão, era mágoa". Sei.
Carol, o Paulo esteve a seu lado quando você inventou que era artista plástica. Lembra? Você largou seu emprego pra pintar aqueles quadros horrorosos, que os amigos compravam por pena. O Paulo ia nos vernissages, tirava fotos, divulgava, aturava seu bafo de nervosismo. Isso é fidelidade. A maior delas. Depois teve a fase "vou reformar a sala pela décima vez". Lembra? Japonesa, tailandesa, nova-iorquina com canos aparentes, com muitos quadros, sem paredes... sua casa esteve em obras por tanto tempo que o cheiro de tinta me lembra mais você que o seu próprio cheiro. E o Paulo apoiando sua esquizofrenia arquitetônica, sabendo que a loucura de trepar há 20 anos com um mesmo ser tinha que vazar pra algum lado. No fundo você queria era mudar a instalação peniana ao lado do sofá. Você queria era variar os objetos do seu design interior. Mas Paulo, que homem, ainda opinava nas almofadas. Ele só queria te ver feliz. Isso é fidelidade. A maior delas.
Façamos assim. Eu volto pra minha reunião e essa faca volta pra gaveta da cozinha. Essa tesoura, pra gaveta do escritório. Nós, todavia, já deveríamos ter saído do armário do puritanismo há muito tempo.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Imaginação do escritor Moacyr Scliar chega aos 80 anos

Qualquer papelzinho que lhe caía nas mãos já era lugar para botar história. Não à toa, ainda criança, Moacyr Scliar (1937-2011) rascunhou suas primeiras narrativas em sacos de pão. A imaginação era alimentada pelas histórias dos imigrantes judeus do Bom Fim, bairro de Porto Alegre onde sua família morava.
Oitenta anos depois –idade que Scliar completaria nesta quinta-feira (23)–, uma programação que vai até o fim do ano celebrará a imaginação do menino. São livros, peças, debates, simpósios e exibição de filmes.
"Acho que a geração que hoje tem 14 e 15 anos já não conhece tanto a obra dele. A memória do brasileiro é curtíssima. Por isso temos feito essas homenagens, e a resposta é sempre grande", diz Judith Scliar, viúva do autor.
O primeiro dos tributos é o lançamento de "A Nossa Frágil Condição Humana" (Companhia das Letras), volume de crônicas sobre temas judaicos organizado por Regina Zilberman.
São textos sobre Anne Frank, a identidade judaica de Kafka, a inquisição ibérica –e, sobretudo, Israel e a política do Oriente Médio. Todos publicados em colunas no jornal "Zero Hora" –Scliar também foi colunista da Folha, de 1993 a 2011.
Formado em setores de esquerda da comunidade judaica, Scliar desejava uma paz com os palestinos baseada em três pontos: renúncia ao terrorismo, retorno às fronteiras acordadas em 1947 e o fim dos assentamentos.
"As crônicas, de 1970 a 2010, são um documento da relação cada vez mais conflituosa entre Israel e os palestinos", diz Zilberman.
A identidade judaica é algo crucial para ler a obra de Scliar. Ele talvez seja o autor a ter mais sucesso de uma família literária também filiada a essa identidade, com Elisa Lispector (1911-1989) e Samuel Rawet (1929-1984). Para Scliar, ganhador quatro vezes do prêmio Jabuti, vale lembrar, essa filiação não se dava pela religião.
"Moacyr é o judeu ateu", frisa Regina Zilberman.
Ainda assim, as histórias bíblicas são influência fundamental na obra do autor de livros como "O Centauro no Jardim", "Sonhos Tropicais" e "A Mulher que Escreveu a Bíblia".
Quem tenta explicar o fascínio que as escrituras exercem sobre Scliar –nas parábolas e na linguagem figurada, por exemplo– é Nélida Piñon, amiga do autor por 30 anos e sua colega na Academia Brasileira de Letras.
"A Bíblia é uma grande narrativa. Você já pensou naquela gente pobre, que andava pelo deserto, levada pelo impulso do vento? Eles passam a admitir o Deus único. Um povo inculto, de pastores, aceita essa invenção espantosa da abstração. E ela traz histórias trágicas, punitivas", diz.
A outra influência marcante em sua obra era sua profissão, a medicina. Depois de exercer algumas especialidades, a veia de esquerda o fez dedicar-se à saúde pública –na qual lidava com os dramas coletivos da sociedade.
O ofício o fez escrever "Sonhos Tropicais", sobre o sanitarista Oswaldo Cruz. Mas já estava também em seu primeiro livro, "Histórias de um Médico em Formação" (1962), que depois ele renegou. E que, mesmo assim, foi um sucesso no Bom Fim –talvez porque sua mãe, não cabendo em si de orgulho, o tenha vendido de porta em porta.


Texto de Maurício Meireles, na Folha de São Paulo

O que Brasil pode aprender com o Canadá na área da saúde?

Quando converso com as pessoas que encontro aqui no Brasil é bem comum eu ouvir: "Você é canadense? A vida deve ser muito melhor que aqui: vocês têm uma saúde excelente por lá!".
Então decidi realmente entender isso. Será que o sistema de saúde canadense é melhor mesmo? E por quê? Nesse sentido, o Brasil tem algo a aprender com os canadenses e, quem sabe, vice-versa?
Ambos, Brasil e Canadá, têm um sistema de saúde universal, ou seja, o acesso é garantido por lei para todos os cidadãos. Mas observe os números: o Canadá tem expectativa da vida de seis anos a mais -84 anos contra 78 anos. Lá, a taxa de mortalidade infantil é cerca de três vezes menor –quatro para cada mil partos versus estratosféricos 14 para cada mil nascimentos no Brasil.
Vários outros índices canadenses têm, de fato, melhores resultados. Mas por que tanta diferença?
Há quem diga que o motivo é porque o Brasil, sendo um país tropical, tem doenças tropicais, mas a explicação é mais simples: o Canadá é mais rico.
O PIB per capita (indicação de quantos recursos existem para cada cidadão) é de R$ 132.000 por ano no país do hemisfério norte. Já no Brasil, é de apenas R$ 26.000 por ano –cinco vezes menor.
Mas não adianta ser só rico, precisa-se investir bem, e o Canadá investe muito mais em saúde, direcionando 11% do PIB à área. Já no Brasil, utiliza-se algo em torno de 8%. Aqui, portanto, são 35% a menos de recursos –simplesmente não se emprega dinheiro suficiente para se chegar ao nível de saúde que o Canadá tem.
Além disso, a população canadense é de apenas 35 milhões de pessoas. Já no Brasil, são 200 milhões –o país é considerado o maior do mundo com sistema de saúde 100% universal–, e o governo precisa garantir atendimento básico, de alta complexidade e remédios para todos os habitantes. Claramente, um desafio imenso que demanda altíssima eficiência em gestão.
Contudo, não é só isso. Também acredito em outros fatores, menos visíveis, para explicar tanta diferença nos números relacionados à saúde entre os dois países.
Um exemplo: o Brasil tem um sistema de saúde suplementar (via planos de saúde) que atende 25% da população. Já no Canadá, a saúde privada não é permitida a existir da mesma forma –são autorizados planos de saúde para apenas alguns procedimentos eletivos, odontológicos e medicamentos caros.
Agora, imagine se no Brasil as classes sociais mais altas precisassem usar as mesmas clínicas e hospitais que as mais baixas. Será que o sistema de saúde público melhoraria?
Mais um ponto: o Canadá tem uma cultura muito mais saudável. Eles consomem muito menos fast foods e refrigerantes e valorizam comida fresca e atividades físicas. Há também bastante espaço público, como parques e calçadas bem cuidadas. Os canadenses também são menos estressados.
No Brasil, a maioria da população mora em cidades, mas sem acesso democrático a espaços públicos para fazer esportes e atividades físicas. Não é uma surpresa saber que o país está sofrendo com a obesidade e as doenças causadas por ela, como diabetes e cardiovasculares.
Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), o Brasil ocupa a 125ª posição no ranking mundial que avalia sistemas de saúde. Descobri que Canada é o número 30! Nem está no top 10. Realmente, fiquei chocado porque sempre pensei que ele era um dos melhores. Mas na verdade não é.
No Canadá, você precisa ver um médico? Agende com uma semana de antecedência. Um dermatologista? Um mês. Precisa fazer uma ressonância ou tomografia? Fila de espera de dois meses. Transplante? Podem ser anos. Por lá, alguns remédios simplesmente não existem –é necessário pagar por eles sozinho (não é como no Brasil que o governo, muitas vezes, subsidia).
De certa forma, o Canadá oferece uma cobertura básica muito boa, mas algumas pessoas acabam "escapando entre os dedos". E se o Canadá é o número 30, quem ocupa primeiro lugar? A França.
E o que ela faz para estar no topo do ranking mundial? Primeiramente, investe e muito. Mais de 20% dos salários dos franceses vão para a saúde. Há um sistema privado e público, mas o governo se envolve bastante como regulador, por exemplo, controlando gastos hospitalares.
A França também foca bastante as doenças mais caras –diabetes, saúde mental e câncer– e paga 100% dos custos com remédios, cirurgias e outras terapias. Por isso, os franceses estão muito satisfeitos e seguros em termos de sua saúde.
Outro diferencial interessante é o quanto eles priorizam a primeira infância (de zero a três anos). O governo reconhece a importância desse período da vida para a saúde em longo prazo. Por isso, novas mães na França têm condições luxuosas: após o parto, por exemplo, por lei podem ficar meses afastadas, recebendo uma bolsa financeira generosa para cuidar do bebê.
Além disso, enfermeiras são designadas para visitas frequentes à casa delas, e as creches são subsidiadas e de altíssima qualidade.
Há alguns fatores fundamentais que dificultam melhorias rápidas em saúde. De outro lado, há muito que pode ser feito sem ter tantos recursos financeiros: coisas como melhorias em gestão, uso de tecnologia, investimento em primeira infância, e mudanças na cultura.
Sem esses tipos de ações, o Brasil não apenas arrisca não melhorar a saúde, mas também compromete todo o progresso conquistado nas últimas décadas.


Texto de Michael Kapps, para a Folha de São Paulo

Reforma da Previdência ignora os vários Brasis

Em sua mais recente coluna nesta Folha, Samuel Pessôa negou que a reforma da Previdência proposta por Temer contribua para ampliar as desigualdades profundas de nosso país -tese que defendi no artigo "Velho Brasil", publicado em 16/3.
Samuel argumenta que "grande parte dos benefícios nas cidades é concedida por tempo de contribuição", aos 55 anos em média, estando a aposentadoria por idade restrita à zona rural. Sendo assim, mesmo que a nova idade mínima atinja sobretudo os mais pobres, conclui que "não é claro que a reforma aumente a desigualdade, já que ela afeta [também] a aposentadoria por tempo de contribuição, que são os maiores benefícios".
Nas áreas urbanas, 19,6% das aposentadorias são por idade. No entanto, é verdade que as aposentadorias por tempo de contribuição são mais importantes nas cidades (30% do total) e quase irrelevantes nas áreas rurais (0,2%). O que surpreende é que se tire daí a conclusão de que a reforma proposta não amplia desigualdades.
O trabalhador rural, que hoje consegue se aposentar por idade desde que comprovados ao menos 15 anos de trabalho, passaria a ter de contribuir mensalmente por 25 anos no mínimo para ter direito a uma aposentadoria parcial.
Ainda que ignorássemos, como Samuel, o forte impacto da alteração da idade mínima e do tempo mínimo de contribuição nas áreas rurais e das mudanças no BPC (Benefício de Prestação Continuada) —que atingem deficientes e idosos mais carentes—, a maior parte dos atingidos estaria na base da pirâmide de distribuição de renda brasileira. Afinal, mesmo entre os aposentados de áreas urbanas, 54,6% recebem até um salário mínimo.
Samuel parece ter esquecido também que a lei 13.183, de 2015, já atacou o problema da aposentadoria precoce nas cidades, pois fixou fórmula que leva em conta a soma de anos de idade e anos de contribuição (85/95) com regra de ajuste demográfico.
Pessôa afirma ainda que "o tempo de sobrevida para as pessoas que chegaram aos 60 anos é no Brasil praticamente igual ao valor europeu" e que "a diferença de sobrevida aos 60 ou 65 anos entre Estados da Federação brasileira e entre a zona rural e urbana no Brasil também é muito baixa".
A diferença na expectativa de sobrevida entre o Brasil e os países da OCDE pode parecer pequena, mas não é. Uma diferença de um ou dois anos nesse indicador pode demorar décadas para ser tirada —a depender, entre outros fatores, de como avança o nosso sistema de saúde (e o deles!).
Entre 1991 e 2000, a expectativa de sobrevida aos 65 anos subiu apenas de 15,4 para 15,8 anos no Brasil, para dar um triste exemplo. Além disso, a expectativa de duração da aposentadoria é de 13,4 anos no Brasil e chega a 17,6 anos na média dos países da OCDE.
Quanto às desigualdades dentro do país, a expectativa de sobrevida aos 65 anos é de apenas 15,8 anos em Rondônia e 20 anos no Espírito Santo, por exemplo.
Infelizmente, não há dados do IBGE para a expectativa de vida desagregados por área urbana e rural —talvez Samuel possa nos dar acesso aos seus—, mas parece muito improvável que a heterogeneidade seja negligenciável ou similar à de países europeus.
Diante da estagnação do desenvolvimento humano brasileiro revelada pelos novos dados do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), o economista Naércio Menezes alertou para os riscos de "tratar macroeconomia e questão social como separadas".
"Na hora de fazer as reformas, o país precisa pensar muito nas famílias mais pobres", afirmou em entrevista ao "Valor Econômico" de 22/3.
Na Belíndia, reformas que imponham a todos o padrão da Bélgica são fáceis de desenhar, mas não levam ao desenvolvimento.


Texto de Laura Carvalho, na Folha de São Paulo

Temer é cafona em Lisboa: abismo na lusofonia é menor do que parece

Por ter lançado um livro chamado "Viva a Língua Brasileira!" (Companhia das Letras), às vezes sou confundido –tanto aqui quanto em Portugal– com um autonomista, alguém que prega a total independência linguística do "brasileiro". Será que já temos um idioma próprio?
Há linguistas que defendem tal ideia, mas não acredito nela. Como o título do livro foi calculado para provocar, uma medida de confusão e perplexidade faz parte do jogo, mas declaro com solenidade que a ideia de ver Fernando Pessoa transformado em poeta de uma língua estrangeira é repulsiva para mim.
Que nosso jeito de falar e escrever merece mais respeito, merece. Abraçar com orgulho a "língua brasileira", entendida como nossa variedade do português, tem imenso valor num cenário em que a gramática normativa ainda tende a condenar em nome de um lusitanismo espectral traços há muito consolidados por aqui, inclusive entre falantes cultos.
Um exemplo: no Brasil, todo mundo chega "em casa", quem chega "a casa" é tuga. Lutar contra esse fato é cuspir no espelho como um Narciso às avessas, para usar o chavão rodriguiano. Pena que todo um sistema de ensino faça exatamente isso. Até o melhor dicionário da língua, o Houaiss, faz isso (a regência "chegar em" é registrada como brasileirismo informal no pé do verbete).
Tudo indica que a fenda gramatical entre o português brasileiro e o europeu está se alargando. No entanto, não é menos curioso observar que certos traços defendidos por linguistas como típicos da nossa variedade se fazem presentes do outro lado do Atlântico também.
Há indícios de que grande parte dos usos engessados que os gramáticos conservadores prescrevem aqui, e que chamamos de "lusitanismos", não são menos engessados em Portugal. A mesóclise de Michel Temer é cafona ("possidônia", à moda lusa) em Lisboa também.
Quem aponta essa e outras semelhanças é o escritor e acadêmico português Fernando Venâncio, da Universidade de Amsterdã, em ensaio publicado no livro "Gramáticas Brasileiras - Com a palavra, os leitores" (Parábola), que reúne apreciações críticas sobre diversas gramáticas lançadas no Brasil nos últimos anos.
Venâncio se debruça sobre a "Gramática Pedagógica do Português Brasileiro", de Marcos Bagno. Defensor da ideia de que já falamos "uma língua plena, e não uma 'modalidade' ou 'variedade' de uma língua chamada genericamente português", Bagno é o mais destacado dos autonomistas. Alguns dos argumentos com que sustenta essa ideia são desmontados pelo colega.
Sim, o Brasil mistura tratamentos na segunda e na terceira pessoa do singular: "Você esqueceu o que eu te disse?". Portugal adora misturar as mesmas pessoas, só que no plural: "Estão todos vós no meu coração".
Sim, a fala brasileira corta caminho eliminando preposições e reconfigurando a sintaxe em "a comida que eu gosto" e "aquele tipo de pessoa que você tem até medo dela". A fala portuguesa, garante Venâncio, não fica atrás.
Há outros casos em que as semelhanças são maiores do que se pensa. Se nenhum deles obscurece o fato de que existem diferenças entre nós, todos ampliam nossa consciência sobre a evolução de um idioma complexo. "Aliados mais que potenciais", como diz o intelectual português, não devem ser desprezados, quaisquer que sejam seus passaportes.


Texto de Sérgio Rodrigues, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 23 de março de 2017

Cacique da reserva de Serrinha é morto com cinco tiros

Cacique da reserva de Serrinha é morto com cinco tiros

Indígena de 57 anos estava na casa de um amigo no interior de Ronda Alta
O cacique Antônio Ming Claudino, 57 anos, da Reserva de Serrinha foi morto na noite dessa segunda-feira com cinco tiros. Os disparos, que atingiram o pescoço do indígena, foram desferidos por uma pessoa que desceu de um Chevrolet Prisma, cor branca, conduzido por uma mulher. Ele estava na casa de um amigo, na localidade de Alto Recreio, interior de Ronda Alta, quando foi atacado.
O cacique, ex-vereador de 2013 a 2016 pelo PT, foi socorrido, levado ao Hospital de Ronda Alta, mas não resistiu aos ferimentos. Claudino era cacique há 20 anos da reserva de 12 mil hectares, onde residem mais de mil caingangues e que abrange os municípios de Constantina, Engenho Velho, Ronda Alta e Três Palmeiras. 
A Delegacia de Polícia de Ronda Alta, no Norte do Estado, abriu inquérito e apura o caso, juntamente com a Polícia Federal (PF). Segundo moradores de Ronda Alta, o cacique era considerado um parceiro das autoridades policiais e se posicionava contra as invasões de terras que ocorriam no interior da reserva.
O corpo do cacique será sepultado na tarde desta terça-feira, na localidade de Alto Recreio, em Ronda Alta, sede da Reserva de Serrinha.

Reprodução do Correio do Povo
 

Homens invadem hospital e matam a tiros liderança do MST no Pará

Homens armados invadiram o Hospital Geral de Parauapebas (PA) e mataram a tiros Waldomiro Costa Pereira, liderança do MST (Movimento Sem-Terra) e assessor de gabinete na prefeitura da cidade, na madrugada desta segunda-feira (20).
Pereira estava internado no hospital desde o último final de semana após ser baleado em seu sítio, na cidade de Eldorado do Carajás. Segundo a
Prefeitura de Parauapebas, ao menos cinco homens armados invadiram o hospital, renderam os seguranças e mataram Pereira.
Pereira não participava recentemente da direção do MST no Estado, pois estava se dedicando ao lote onde vivia no Assentamento 17 de abril. Ele era militante do MST desde 1996 e, segundo o movimento, "contribuiu durante longo período na luta pela reforma agrária". Pereira também era militante do PT (Partido dos Trabalhadores).
O MST informou que desconhece os motivos do assassinato e lamentou a morte do militante. Em nota, o movimento sem-terra disse esperar que as autoridades tomem as providências necessárias diante da execução sumária praticada por assassinos dentro do hospital com vigilância de câmeras.
"Este é mais um assassinato de trabalhadores no Estado do Pará que o governo é culpado pela sua incompetência em cuidar da segurança da população e praticado em função da negligência do Estado em apurar e punir os crimes desta natureza".
A Prefeitura de Parauapebas também manifestou pesar pela morte e se solidarizou com os familiares e amigos de Pereira.


Reportagem de Marha Alves, na Folha de São Paulo.

Viciado em crack, morador de rua revitaliza praça no centro de SP


Quando era pequeno, Alexandre Martinez escutava a avó conversando com as plantas. "Tá doida, vó?", perguntava. Depois, passou a ajudá-la no ofício –e essas plantas, em Limeira (151 km de São Paulo), eram tão admiradas que atraíam até quem pedisse para comprá-las. Hoje, aos 41, esse morador de rua com as mãos sujas de terra é quem conversa com as "meninas" que plantou em uma praça no centro de São Paulo.
Sozinho, ele revitalizou em três meses o pequeno espaço na esquina das avenidas São João e Duque de Caxias. Martinez substituiu o lixo e o entulho por canteiros com pau-brasil, palmeira, bananeira, abacateiro. Também plantou boldo, batata doce, feijão, pimenta, cebolinha e plantas decorativas como a espada-de-são-jorge. Nesta segunda (20), foi a vez do chuchu.
O centro da praça agora tem um vaso que ele encontrou em uma caçamba e uma cesta de lixo –a única do local– que ele mesmo pendurou em um poste. As paredes, pichadas, ele pintou com tinta presenteada por um carroceiro –sem pincel, mas com a espuma de um colchão.
Com uma pequena faca de cozinha, vai limpando as plantas no solo. Aponta para pontos em que algumas foram arrancadas por outras pessoas. Mas afunda as mãos na terra e diz: "Se plantei, tenho que cuidar. São minhas meninas". E o faz com delicadeza. "Mó deselegância, amigo, não precisa disso", comenta quando um morador dali urina no pé de um dos coqueiros.
Moradores do entorno reparam na mudança gradual da praça e elogiam o autor das alterações –na tarde em que a reportagem passou com ele, nesta segunda, três pessoas pararam para felicitá-lo espontaneamente. "Ele não para. É uma máquina. Observo ele dia e noite, desde janeiro. O rapaz tem talento", diz Maria do Socorro dos Santos, 61.
Outra senhora passa e pergunta se ele quer algumas mudas. "Opa, aceito!", responde o jardineiro. "Ele é uma pessoa muito organizada, caprichosa. É um prazer passar por aqui agora", diz ela, Ciralva Pereira, 71. "Antes, eu precisava limpar todos os dias. Agora não preciso mais", afirma a gari Maria das Neves Silva, 65. "Melhorou 100%. Eu o parabenizo."
"Não faço isso por dinheiro nem por glória. Faço para controlar minha ansiedade", diz Martinez. "Tentei melhorar a praça. E daí, com isso, deixei de fumar um cigarro. Depois, deixei de usar uma droga. Preenche minha cabeça e meu tempo", diz, mostrando na carteira uma pedra de crack, enrolada em um pedaço de papel. "Por estar cuidando das plantas hoje, não estou fumando isso."

JARDINEIRO

Depois de Limeira, Martinez retomou sua experiência como jardineiro em Maresias, no litoral norte de São Paulo, conta, colocando para trás das orelhas os cabelos compridos e encaracolados.
Aos 19 anos se despediu da avó, que o criou (a mãe morreu quando ele tinha sete anos), e foi para a praia sem dinheiro no bolso. Ao vê-lo dormindo em uma praça, um homem o contratou para fazer um bico de jardinagem. Pegou gosto. Durante cinco anos, "trabalhava três dias e ficava um na praia, fumando maconha e surfando".
Depois, foi para Salvador, onde trabalhou como garçom. Quando chegou a São Paulo, já viciado em crack, conheceu na boate Lovestory, no centro da cidade, aquela que atualmente é sua ex-mulher. A tatuagem no braço, "Nicole, amor eterno", denuncia: tiveram uma filha, hoje com 11 anos, "olhos azuis como os meus e loira como a mãe", diz ele, que a vê quando se considera arrumado e bem.
No começo do ano, Martinez morava na praça 14 Bis, onde o prefeito João Doria (PSDB) inaugurou seu programa de zeladoria Cidade Linda. Incomodado com a lona verde que a prefeitura colocou sob o viaduto Plínio de Queiroz, escondendo os moradores de rua, migrou para a praça na Duque de Caxias. Há duas semanas, deixou de dormir ali para alugar um quarto na cracolândia (região da Luz) por R$ 25 a noite.
"Volto para a praça de dois em dois dias, quando não chove", diz ele. Rega as plantas com água que vaza de um prédio próximo dali. As mudas são doadas ou colhidas de outros canteiros –e é assim também que recebe renda suficiente para pagar sua hospedagem. Outras vezes vende na cracolândia frutas caídas de carregamentos.
Materiais foram presenteados, como a vassoura e uma enxada, que ele diz sentir falta –foi confiscada pela GCM (Guarda Civil Metropolitana), segundo conta, resignado.
Mas ele queria mesmo era uma barraca, para voltar a dormir na praça e cuidar das plantas. "Quando levanto, agradeço todos os dias por mais um dia", afirma. "E como posso ir embora? Daqui a pouco tem festa junina e vou querer provar da minha batata doce", brinca, sorrindo.


Reportagem de Juliana Gragnani, na Folha de São Paulo

Médico precisa ter cuidado até para dar boa notícia

Em outubro passado, recebi o diagnóstico de um pequeno nódulo na vesícula durante ultrassom de abdome de rotina. Nada muito assustador exceto o fato de a minha mãe ter morrido três meses antes de um câncer primário nesse mesmo órgão, com metástase no fígado.
Eu e minha médica decidimos repetir o exame seis meses depois para ver como o nódulo havia se comportado. Caso tivesse aumentado ou mudado de formato, faria uma cirurgia para retirar a vesícula.
Na semana passada, repeti o ultrassom de abdome com uma certa apreensão. Ao passar o transdutor na região da vesícula, a médica se deteve no local. Passou o aparelho várias vezes. "Segura a respiração, agora solta." "Vira de lado, agora do outro". Nesse meio tempo, falava baixinho com a assistente.
Depois de alguns minutos e nada de dar prosseguimento na análise de outros órgãos, perguntei à médica se havia algo errado com a vesícula. "Ao final a gente conversa", ela respondeu. Engoli o choro.
É claro que não ela fazia ideia (e continua não fazendo) do impacto que essas palavras iriam me causar. As três semanas terríveis entre o diagnóstico do câncer da minha mãe a morte dela voltaram a me assombrar. Na minha cabeça só passava o pior. Naquela hora, de nada valeu o arsenal de informações que eu tinha sobre o câncer que levou a minha mãe e o fato de o tumor não ter origem genética.
Após examinar os outros órgãos, a médica deixou a sala e voltou dizendo que repetiria a análise da vesícula, aumentando ainda mais a minha apreensão. Após mais alguns minutos, ela disse: "Não fique assustada, mas é que não estou encontrando o nódulo que o exame anterior havia detectado. A sua vesícula tá ótima, não tem nada". Chorei de alívio.
Ela não entendeu nada. Eu também me calei sobre a razão das lágrimas. Claro que ninguém tem a obrigação de conhecer de antemão as suscetibilidades do paciente, mas penso que ainda há muito o que avançar na comunicação de notícias (as ruins e as boas também).
O meu caso não é nada diante de tantas histórias que já ouvi e escrevi, mas me fez lembrar delas. De uma amiga febril que ouviu de um infectologista que ela tinha leucemia (sem ao menos os olhar os exames) a um oncologista que, diante da recidiva do câncer da paciente, decretou a sua morte dizendo mais ou menos assim: "Aproveite o seu filho enquanto há tempo". Detalhe: o filho, de oito anos, estava do lado dela.
Há histórias que de tão bizarras parecem inverossímeis. Uma leitora me contou que certa vez um especialista em reprodução humana disse que ela não engravidaria naturalmente porque, aos 41 anos, não era mais "aquela Brastemp".
Dentro das instituições de saúde, existem várias iniciativas com o intuito de melhorar a comunicação entre médicos e pacientes. Algumas envolvem até encenações com atores profissionais para ensinar a comunicação de más notícias. Muitas são louváveis, mas pouco adianta se o profissional desconhecer aquela velha e boa regra de ouro: trate os outros como gostaria de ser tratado, ou faça aos outros aquilo que gostaria que fizessem a você.


Texto de Claudia Collucci, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 20 de março de 2017

As almas se dividem entre as próximas de Tolstói ou de Dostoiévski

Existem dois tipos de alma: ou você está próximo de Dostoiévski (1821-1881) ou de Tolstói (1828-1910). Talvez pareça excessivamente chique uma divisão dessas, mas, ao fim dessa coluna, espero que fique menos obscuro esse critério.
Essa é a tese do crítico George Steiner em seu maravilhoso livro "Tolstói ou Dostoiésvki", da editora Perspectiva. Um dos livros mais belos que já li na vida. Próximo ao "Obras do Amor" de Kierkegaard (1813-1855), que é de longe o livro mais belo escrito em filosofia ou teologia que conheço.
A beleza e o amor suspendem a vida acima da banalidade do cotidiano. Despertá-los talvez seja a missão mais sublime que alguém pode ter na vida com relação aos seus semelhantes.
Uma das forças da literatura clássica é nos fazer conhecer a nós mesmos. Sei que está na moda dizer que não existe literatura clássica, mas deixemos de lado essa discussão entediante.
A tipologia que nos propõe Steiner deita raízes nos dois estilos gregos: o épico e o trágico. Tolstói estaria no primeiro, Dostoiévski no segundo. E, por consequência, são dois modos distintos de viver a vida. Ambos carregando a grandiosidade de espíritos avassaladores, como os dois escritores russos.
O épico seria o estilo em que a vida está envolvida pela presença do mito ou da religião, fundando uma ação fincada na esperança prática do transcendente (mundo dos deuses) e, por consequência, na esperança da redenção do mundo. Salvar o mundo é sua marca. Pessoas épicas sentiriam que suas vidas são acompanhadas por forças que as tornam capazes de redimir o mundo de suas misérias. Sua virtude central é a esperança.
Por "prática" aqui, quero dizer que não se trata de um espírito religioso meramente teórico ou alienado do mundo, mas profundamente enraizado nas agonias e demandas do mundo.
Para Steiner, Tolstói tem esse espírito de modo bem evidente, entre outros momentos, no período em que escreve "Ressurreição", que começou a ser publicado na Rússia em fascículos em 1899. O Conde Tolstói nessa época estava bastante envolvido na luta contra as injustiças da Rússia czarista, e abraçou, no final da vida, uma forma de anarquismo cristão pietista bastante radical.
O trágico seria o estilo em que o olhar para a vida se mantém fincado na fragilidade dela.
A precariedade é a estrutura dinâmica da vida. Nas palavras do escritor americano Henry James (1843-1916), uma vida tomada pela "imaginação do desastre". Aqui não há redenção, há coragem de enfrentar esse "desastre" que é a existência humana. Para Steiner, esse é a alma dostoievskiana. Sua virtude central é a coragem.
Aqui, mesmo que haja o divino, como há em Dostoiévski, o peso do drama cai sobre as costas do homem que caminha sozinho pelo chão do mundo. A beleza de Deus, na forma de "taborização" de seus místicos, como se fala na teologia russa, em referência à transfiguração do Cristo no Monte Tabor, aparece sempre como iluminação da agonia humana a sua volta (basta ver o Príncipe Mishkin do romance "O Idiota").
O místico em Dostoiévski ilumina por contraste. Sua luz divina faz a doçura do perdão brotar na consciência atormentada do pecador.
Uma alma tolstoiana é uma alma iluminada pela esperança e pela vitalidade que Deus a empresta. Seu elemento é a força de atuar no mundo social e político.
Uma alma dostoievskiana é iluminada pela dor e pela coragem que a mantém de pé. Seu elemento é a misericórdia como substância de sua psicologia espiritual.
E como passamos dessa alta teologia para o chão do cotidiano de nós mortais?
Almas tolstoianas lutam a cada dia contra a miséria do mundo, fazendo deste um campo de batalha contra o mal, movidas por uma certeza que parece alucinada.
Almas dostoievskianas, um tanto mais delicadas, suportam o sofrimento encantando o mundo a sua volta com piedade e sinceridade avassaladoras.
Felizes são aqueles que convivem com pessoas assim. A vida se transfigura em esperança e coragem. Duas faces da graça que sustenta o caminho dos homens. Mas, sem humildade, como sempre, seremos cegos a essas virtudes de Deus.


Texto de Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo